O nome Blue Note Records traz à mente um som que já foi dominante no jazz: o hard-bop dos anos 1950 e 60, com seu flexível ritmo four-beat swing, suas exuberantes, mas contidas, harmonias de trompas, seu piano frio e percussivo. Imagine um salão enfumaçado com um trompista soprando furiosamente sobre um baixo itinerante: você estará ouvindo o som da Blue Note. Pense numa capa de disco modernista, em tons cobalto, título compacto e foto de um compenetrado estudante de música vergado sobre seu instrumento: você estará frente ao look Blue Note.
Há muito tempo essas divagações viraram realidade – para o jazz ou para a Blue Note, que neste ano completa 80 anos. Desde os anos 1960, o selo tem passado por inúmeras fusões corporativas, fechamentos parciais e reajustes criativos, tudo isso enquanto lutava para manter o jazz num estado de difusão: muitos de seus avanços ocorreram pelas margens, dificilmente se podendo falar numa corrente predominante. “Jazz” hoje envolve todo um oceano de tendências musicais: o tradicionalismo sisudo, o funk renegado, improvisações. Músicos de jazz agora têm de ser improvisadores formados na tradição americana, com raízes no blues. E praticamente quase qualquer coisa passa a valer.
Quando o músico e produtor Don Was assumiu a presidência da Blue Note, em 2012, estabeleceu como missão “manter viva a estética Blue Note e levá-la adiante”. Que significa isso exatamente? E que é o jazz hoje, quando a própria noção de gênero musical parece morta? Nos últimos anos, os pianistas estrelados Robert Glasper e Jason Moran decidiram não renovar seus contratos com a Blue Note. Glasper está cada vez mais transpondo a suavidade do jazz, enquanto Moran vem se concentrando num trabalho mais fortemente multidisciplinar. Numa era de faça-você-mesmo, alguns artistas parecem ter pouco interesse em se associar ao legado de uma organização que tem como slogan “o melhor do jazz desde 1939”. Entretanto, Was conseguiu reunir um elenco incontrolavelmente energético e diverso.
No ano passado, o trumpetista Ambrose Akimnusire lançou um álbum chamado Origami Harvest, com um quarteto de cordas, um rapper e uma banda de jazz de três músicos. Neste ano, o vibrafonista Joel Ross comandou um quinteto tradicional em seu álbum de estreia, Kingmaker. O pianista James Francies debutou triunfalmente com sua composição Flight, e o compositor e percussionista Kendrick Scott lançou a vigorosa miscelânea sonora A Wall Becomes a Bridge.
“A velha Blue Note dos anos 1950 e 60 continua sendo uma espécie de Antigo Testamento para qualquer músico de jazz, mas hoje cresceu além disso”, disse Michael Cuscuna, produtor de discos que trabalhou em reedições e lançamentos de grande parte do catálogo da Blue Note. Ele falou elogiosamente da geração mais nova, afirmando que estava impressionado com seu talento. “Eles voltaram ao começo e agora estão mapeando o caminho para o amanhã”, disse.
A Blue Note sabe que a história é seu grande patrimônio. A cada aniversário marcante, a etiqueta faz um longo inventário e reembala seu passado. Neste ano, a Blue Note está relançando vinis dos dias de glória de meados do século 20. A marca começou como um projeto apaixonado. Seus primeiros diretores, Alfred Lion e Francis Wolff, eram judeus alemães imigrante e compartilhavam a devoção pelo jazz. Seus primeiros lançamentos traziam um manifesto impresso na capa: “Jazz é expressão, comunicação, manifestação musical e social. As gravações Blue Note estão empenhadas em identificar seus impulsos, não seus adornos sensacionalistas e comerciais.”
Desde o começo, Lion e Wolff preocuparam-se em descobrir músicos marginais e jazz e deixá-los contar musicalmente suas histórias. Antes do hard-bop se tornar sua marca registrada, os lançamentos do selo iam do swing ao dixieland.
Tipicamente, Lion produzia os discos e Wolff fotografava as sessões de gravação, que, a partir dos anos 1950 eram quase sempre realizadas por Rudy Van Gelder em seu pequeno estúdio de Englewood Cliffs, New Jersey. Foi ali que Art Blakey gravou as várias interações de sua banda, os Jazz Messengers; que Herbie Hancock fez seus primeiros e melhores álbuns como bandleader; e que Wayne Shorter produziu algumas de suas gravações mais citadas na história do jazz.
Em Blue Note Records: Beyond the Notes, um reflexivo documentário sobre os 80 anos da Blue Note, Shorter lembra que Lion e Wolff eram abertamente hostis às imposições comerciais e conscientes do real valor da música. “Eles ouviam música não apenas como música, mas como um tesouro.”
Em meados dos anos 1960, a saúde fragilizada de Lion levou ele e Wolff a venderem a etiqueta à Liberty Records, para ser rapidamente adquirida por uma seguradora. A popularidade do jazz estava em baixa e sob a nova supervisão o elenco da Blue Note tomou um rumo mais voltado para gravações de funk. Muitos de seus artistas não envelheceram bem, embora alguns – como Donald Byrd e seu Black Bird, e Bobbi Humpreeys e seu Blacks and Blues captassem o espírito da época se tornassem hits.
No final dos anos 1970, os chefões da EMI – que havia adquirido o catálogo da Liberty – deram um tempo à Blue Note. Cuscuna, o produtor de gravações, continuou a relançar alguns itens do antigo catálogo, mas pela maior parte da década, a marca não lançou novos álbuns.
Finalmente, em meados dos anos 1980, após abrigar-se sob o guarda-chuva da Capitol Records, a Blue Note reviveu, com Bruce Lundwall tornando-se seu executivo chefe. Ele trouxe de volta a dedicação ao jazz e aos ideais originais de Lion e Wolff. Levou a sério os Young Lions – um grupo de músicos de cara nova empenhados em reviver o clássico hard-bop e sons do início da história do jazz –, mas também investiu em artistas interessados no tradicionalismo: conceitualistas como Geri Allen, Greg Osby e Moran. É possível ouvir-se múltiplas e diferentes versões do jazz dos anos 1990, dependendo de quais gravações da Blue Note você escolha.
O trompetista Terence Blanchard, que ingressou na Blue Note nos anos 1990, ainda grava para o selo. Ele se sentiu em casa com Lundvall, após sofrer pressões ainda na Columbia para fazer “gravações conceituais”, que eram mais fáceis de entrar no mercado. Mas na Blue Note, disse ele, “Bruce queria que eu fosse quem eu sou”.
O compartilhamento alterou a indústria de gravações por volta da virada do milênio, e a Blue Note não renovou contrato com alguns de seus artistas. Mas em 2002 houve uma espécie de apoteose: Lundvall apostou em Norah Jones, uma pianista e vocalista desconhecida de 22 anos que estava apenas ingressando no cenário do jazz e da composição de Nova York. “Ele não estava seguro do que eu podia fazer, e nem eu”, disse Jones . “Então, me deu dinheiro para fazer algumas gravações de amostra.” Esse material eventualmente levou a Come Away With Me, álbum de estreia de Jones que vendeu 30 milhões de cópias em todo o mundo.
Cerca de 90% dos 1,2 mil títulos do catálogo da Blue Note são encontráveis no Apple Music e no Spotify. A etiqueta reinveste muito de seu lucro em promover seus novos artistas – mesmo quando o retorno tende a ser modesto. Com o jazz e a música experimental atraindo um novo interesse de jovens admiradores, a Blue Nove vê uma oportunidade de pôr seu nome para funcionar e se restabelecer como influência no futuro da música.
Um dos primeiros contratados de Was para a Blue Note foi Gregory Porter, um barítono que se tornou um dos maiores vendedores da etiqueta. E um mês após a chegada de Was, Glasper lançou Black Radio, que vendeu o equivalente a 300 mil álbuns e ganhou o Grammy de melhor álbum de rhythm and blues de 2013.
Kingmaker, álbum de estreia do vibrafonista Joel Ross, de 24 anos, é uma gravação que parece agradar tanto a aficionados quanto a ouvintes casuais. O álbum tem composições bem dosadas com ritmos cruzados e uma coloquial e hiperarticulada vibe que soa distintamente millennial. Kingmaker é feito de músicas belas e indeterminadas, mas Ross não se apressa a se impor nenhuma grande tendência narrativa.
Was disse que “nos anos 1960 havia um som Blue Note: bastava baixar a agulha e já se sabia que se tratava de uma gravação do selo, antes mesmo de se saber qual era a música”. Hoje segundo ele, “não dá mais para se fazer isso, principalmente porque os artistas se acostumaram a mais liberdade”. E acrescentou: “Não dá mais para dizer a eles quem vai fazer a capa do álbum ou quem vai fazer a mixagem, nem forçá-los a seguir a linha de som da gravadora. E isso me deixa orgulhoso.” / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ
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