100 anos de Clarice Lispector: entenda por que a autora segue desafiando leitores

Obra permanece atual, provocando reflexões agudas sobre a condição humana

PUBLICIDADE

Por Yudith Rosenbaum
Atualização:

Desde sua estreia em 1943, com o romance Perto do Coração Selvagem, Clarice Lispector (1920-1977) nunca deixou de surpreender seus leitores e transformá-los a cada leitura. Aos 100 anos de seu nascimento, ainda os faz estremecer a cada frase insólita e a cada imagem inusitada. Alceu Amoroso Lima chegou a escrever, na orelha do segundo romance da autora, O Lustre, de 1946, uma afirmação até hoje verdadeira: “Ninguém escreve como Clarice. Clarice não escreve como ninguém”. 

É preciso dizer que ela mesma se autodefinia como uma dona de casa que escrevia livros, com a máquina de escrever no colo entre filhos e empregadas domésticas – uma imagem bem prosaica, simples e sem glamour, que desmitifica a escritora. Ela chegou mesmo a afirmar: “Levo uma vida muito corriqueira. Crio meus filhos. Cuido da casa. Gosto de ver meus amigos. O resto é mito”.  Já a sua literatura parece bem mais complexa, mais desafiadora para o leitor, ainda que as cenas “inocentes” de muitas narrativas se aproximem desse quadro que ela descreveu para si mesma. A grande maioria das personagens é de mulheres, que são flagradas em meio ao seu mais comum dia a dia, imersas na mesma vida doméstica da autora. Sobretudo em Laços de Família, de 1960, essas personagens estão enlaçadas por uma aprisionante dinâmica familiar e social. Sua marca é a inquietação e o conflito entre, de um lado, o que se espera das mães e esposas quanto aos papéis a serem cumpridos – em geral, de apagamento e submissão ao marido, ainda mais nas décadas de 40/50 no Brasil – e, de outro lado, um anseio de uma vida mais intensa, plena de novidade e arrebatamento. Vemos as mulheres desejarem tanto a libertação dos laços quanto a inserção segura no contexto familiar. Quando estão dentro querem sair, quando estão fora buscam retornar. Esses laços, que parecem tão sólidos, vão se mostrar apertados demais, opressores até. As histórias de Clarice apresentam ao leitor o instante em que a vida conhecida e habitual, domesticada pelas instituições e valores compartilhados, vida na qual nos sentimos tão protegidos, sofre uma perturbação intensa, geralmente motivada por estímulos insignificantes ou absolutamente comuns. Na verdade, para Clarice, estamos todos a um passo do abismo (ou do êxtase) e o chão pode se abrir aos nossos pés a qualquer momento. Talvez isso seja o grande motor de sua escrita: desestabilizar nossa ilusão de segurança e solidez e, sobretudo, abalar ou desmontar a imagem reconfortante que temos de nós mesmos. Será por isso que tantas personagens claricianas se miram ao espelho sem se reconhecer?  Como diz Clarice, “as coisas não são fáceis, mas é preciso dizê-las”. Ela não sopra nossas feridas e carências. Ao contrário, penetra nelas como modo de nos despertar de uma insistente alienação. Ou como está na abertura do conto Os Obedientes, que talvez seja um resumo da força da sua literatura: “Trata-se de uma situação simples a contar e esquecer. Mas se alguém comete a imprudência de parar um instante a mais do que deveria, um pé afunda dentro e fica-se comprometido”.  Clarice quer fazer-nos parar a nossa engrenagem automática do cotidiano e nos comprometer com as revelações que vêm de sua escrita. Ela nos desafia a refletir sobre quem somos e percebemos, ao final, que somos desconhecidos de nós mesmos. Em sua obra, os processos de aculturação, com suas renúncias inevitáveis, fazem o trânsito difícil da Existência – sempre maior e mais vasta, às vezes até perigosa, onde podemos nos perder – para a vida mais formatada e cotidiana. O perigo existe quando algo imprevisto (e banal) nos empurra para fora da rede conhecida. Esses são os momentos em que uma fenda se abre e as personagens vislumbram, não sem angústia e atordoamento, a tessitura invisível que liga tudo e todos os seres. Esta é a experiência de Ana no conto Amor, quando olha um cego mascando chiclete no ponto do bonde... Sua vida arrumada sofre um abalo e o mundo recomeça novo e intenso, sem garantias e sem certezas. Para dar forma aos estados de estranhamento vivenciados pelas personagens, a linguagem da autora desautomatiza o senso comum, seja pela pontuação inusual (a vírgula que abre o romance Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres), seja por expressões ilógicas (“o ovo é invisível a olho nu”, do conto O Ovo e a Galinha) ou invertendo o esperado (“Ser cego é ter visão contínua”, em A Maçã no Escuro). Em Clarice, forma e conteúdo são inextricáveis. 

A agora centenária escritora Clarice Lispector Foto: Baptistão

Movendo-se neste pano de fundo da escrita, está uma “legião estrangeira” (aliás, título de seu segundo livro de contos, de 1964) que reúne crianças, animais, mendigos, marginais, empregadas domésticas, pessoas desarrazoadas ou loucas, todas portadoras de um modo outro de existir que ameaça a bolha narcísica pela qual nos defendemos das diferenças. São presenças incômodas que rondam o sono acomodado dos que evitam saber de si e dos outros. Um dos textos mais explosivos da autora, que traz a potência desse olhar para os “desviantes”, é a crônica Mineirinho, sobre um bandido morto pela polícia do Rio de Janeiro com 13 tiros, em 1962. “Uma bala bastava. O resto era vontade de matar”, diz Clarice na famosa entrevista à TV Cultura em 1977. Em sua revolta, que ainda reverbera diante de cenas da atualidade, a cronista nos legou uma visão contundente da violência criminosa oculta sob o álibi da lei. E a reversão das posições, traço recorrente em sua obra, faz o leitor questionar a ordem natural das coisas: “Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente”. O 14.º tiro, portanto, é o de Clarice, que atinge em cheio o leitor desarmado. E o acorda. É PROFESSORA DE LITERATURA BRASILEIRA DA USP

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.