THE WASHINGTON POST - George Orwell nunca caiu no esquecimento, mas uma camada de poeira cobriu sua obra depois da Guerra Fria.
Suas duas grandes distopias, 1984 e A revolução dos bichos, se cristalizaram em clássicos do ensino médio. O uso excessivo transformou seus neologismos brilhantes em clichês.
A Apple se apropriou do tema aterrorizante do Big Brother para fazer um comercial de TV espalhafatoso. E o nome de Orwell virou um adjetivo comum – orwelliano – instrumento cada vez mais contundente para ser usado contra qualquer pessoa suspeita de enganação descarada ou, em última análise, contra qualquer pessoa de quem você discorde.
Perto do começo do século 21, essas alusões explodiram – junto com os desertos do Iraque – enquanto o presidente George W. Bush procurava armas de destruição em massa que não existiam.
Depois da aprovação do “Patriot Act”, a vida privada dos americanos ficou sujeita a uma vigilância mais sofisticada que as teletelas de Oceânia. A comparação pareceu tão certeira que algum brincalhão do jornal Orange County Register publicou uma fake news informando que o espólio de Orwell estava processando Bush por plágio.
Todos os políticos são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros. Na verdade, foi necessária a ascensão de uma estrela de reality show várias vezes falida para fazer Orwell duplomaisbom relevante de novo.
Desde o primeiro dia do reinado de caos do presidente Donald Trump, 1984 forneceu uma cartilha de códigos. O secretário de imprensa da Casa Branca, Sean Spicer, insistiu que a multidão na posse de Trump era a maior de todos os tempos – enquanto todos nós víamos imagens provando o contrário na televisão. Fluente em novilíngua, a ministra da Verdade, Kellyanne Conway, explicou que o novo governo estava se baseando em “fatos alternativos”.
Dada essa campanha publicitária, o romance de Orwell pulou para o primeiro lugar na Amazon. As vendas de 1984 dispararam 9.500% e a editora anunciou uma reimpressão especial de 75 mil exemplares para atender à demanda.
“Não se esqueçam”, disse Trump a uma plateia de veteranos no ano seguinte, “o que vocês estão vendo e lendo não é o que está acontecendo”, o que soou estranhamente parecido com a insistência do Grande Irmão de que os membros do Partido deveriam “negar a evidência de seus sentidos”.
Agora que os relógios voltam a marcar 13 horas, é hora de nos aventurarmos mais uma vez em Oceânia e vivenciarmos essa distopia com novos olhos – ou outros olhos. É exatamente isso que Sandra Newman faz em seu novo e subversivo romance, Julia.
Com a aprovação do espólio de Orwell, trata-se de uma releitura de 1984 da perspectiva da amante de Winston Smith. O efeito dessa pequena mudança é estranho: o mundo que Julia descreve é totalmente familiar, mas sutilmente alterado em relação ao mundo em que Winston vive.
Além de preencher a tragédia da adolescência de Julia, Newman introduz diversas reviravoltas engenhosas que permitem que a trama prossiga em grande parte como esperado, mas com implicações curiosamente diferentes.
Exceto por uma cena extraordinária, tudo o que Newman escreve acontece dentro dos limites da história original. De alguma forma, ela enfiou a pinça na garrafa de Orwell e reconstruiu o navio, mas agora apontado para o outro lado.
Muitos dos personagens, os ministérios da Verdade e do Amor, o dicionário cada vez menor, as histórias constantemente reescritas, os Dois Minutos de Ódio, a guerra sem fim com a Eurásia (ou será a Lestásia?) e todos os seus horrores favoritos de 1984 estão aqui.
Mas, ainda que Julia deva sua arquitetura a Orwell, o tom irônico do romance é todo de Newman. Ao mudar a perspectiva de Winston, ela efetivamente expandiu a paleta da história.
O reino que Newman descreve não é mais livre nem tolerante que o famoso universo de Orwell, mas oferece bem mais espaço para respirar. (Também recebeu consideravelmente mais páginas, o que não chega a ser uma coisa boa).
Tudo isso decorre de sua vívida heroína, Julia, o que é uma estratégia brilhante para lançar novos olhos sobre essa história icônica. Afinal, em 1984, o próprio Orwell observa: “Em alguns aspectos, ela era muito mais perspicaz que Winston e muito menos suscetível à propaganda do Partido”.
Então, Julia imagina como uma jovem assim poderia se comportar. Como Margaret Atwood deixou claro em O Conto da Aia, o totalitarismo inevitavelmente atinge as mulheres em idade fértil de uma forma que não atinge os homens. E Newman conhece muito bem o terreno distópico. No ano passado, ela publicou The Men, romance em que todas as pessoas com cromossomo Y desaparecem misteriosamente.
Em público, Julia parece seguir todas as regras – afinal, existe a Polícia do Pensamento. Polvilha sua fala com bobagens da novilíngua, finge entusiasmo pela propaganda obviamente falsa do Partido e participa na Liga Anti-Sexo.
Mas, em segredo, ela é engraçada e extrovertida. Seu primeiro trabalho foi escrever pornografia para os proles – histórias horríveis com títulos como “Pecadores do Partido: ‘Minha teletela está quebrada, camarada!’”. Quando o romance começa, ela é técnica do Departamento de Ficção e mora em um albergue com dezenas de mulheres solteiras, algumas das quais são amigas de verdade.
E ela transa – muito – com uma sequência de homens desinteressantes, especialmente ao ar livre. Em outras palavras, tal como milhões de pessoas presas sob governos totalitários, ela encontrou formas de enganar um sistema corrupto, de cultivar flores nos excrementos do regime, de prosperar um pouco nas fendas que as teletelas não conseguem monitorar.
Tudo isso faz com que Winston Smith – aqui apelidado de “Velho Desgraçado” – pareça um chato insuportável. Mesmo assim, algo em Winston chama a atenção de Julia. “Bonito”, ela pensa, “ou pelo menos poderia ser bonito, se não tivesse a cara sempre tão azeda”. Que empolgante, pensa Julia, pegar Winston “cometendo algum crime indescritível” em um bairro pobre e sombrio. “Será que a monotonia dele não é um disfarce inteligente?”, ela se pergunta antes de cair em alguma fantasia aproveitável a seu respeito.
“Estes eram os pensamentos de Julia”, escreve Newman, “nos dias antes de ela ter feito aquilo que os matou”.
Se você conhece 1984, é parecido com O Mágico de Oz passando do preto e branco para o colorido. Não querendo só fantasiar com Winston, Julia tenta seduzi-lo. “Salvamos o verão do tédio”, ela pensa. Mas Winston não consegue se livrar de sua melancolia tediosa, de sua obsessão exaustiva pelos males do Partido.
Ela tenta dormir enquanto ele lê em voz alta algum manifesto ilícito “como se contivesse inúmeras revelações”. Faça-me o favor, ela pensa, “um menino bobo poderia ter lhe dito todas essas coisas”. Winston também mantém um pequeno diário com seus pensamentos criminosos e supostamente profundos. “Que podre!”, Julia diz a ele.
“Nós somos os mortos”, entoa Winston.
“Ainda não estamos mortos”, rebate Julia. “Pelo amor de Deus!” E então ela desconstrói alegremente o pessimismo autodestrutivo e egocêntrico de Winston. “Com quem você prefere dormir, comigo ou com um esqueleto? Você não gosta de estar vivo? Não gosta de sentir: este sou eu, esta é minha mão, esta é minha perna, sou maciço, sou de verdade, estou vivo!”.
Este diálogo é quase todo retirado do 1984 de Orwell, mas, ao reformulá-lo com o comentário interno de Julia, Newman criou algo em um registo diferente. “Por que”, ela se pergunta, “esse desgraçado estava sempre reclamando?” Acabei me lembrando da brilhante réplica de Anthony Hecht ao poema Dover Beach, de Matthew Arnold:
Então lá estava Matthew Arnold com uma moça
Os penhascos da Inglaterra desmoronando atrás deles,
E ele disse a ela: “Tente ser verdadeira comigo,
E farei o mesmo por você, pois as coisas estão ruins
Está tudo acabado, etc., etc.”
Só que eu conhecia essa moça. É verdade que ela tinha lido
Sófocles numa tradução bem boa
E captado aquela amarga alusão ao mar,
Mas o tempo todo que ele ficava falando ela tinha em mente
A sensação de como seria o bigode dele
Na nuca dela.
Mas Julia não é só uma zombaria superficial com a alma torturada de Winston. É uma exploração cuidadosa sobre a sobrevivência de uma mulher inteligente dentro de uma burocracia inimaginavelmente cruel, que ela ousa perceber que é ridícula. “O crime de pensamento não tinha nada a ver com crime. Não era nem mesmo um prelúdio para o crime”, ela pensa, alarmada. “É o mesmo que executar um menino de seis anos por dizer que gostaria de ser pirata”.
Julia chega a uma nova condenação do totalitarismo que se recusa a aceitá-lo como digno de debate político: ela sabe que é simplesmente uma “farsa indecorosa”.
Isso não quer dizer que Newman desconsidere a agonia física do totalitarismo – ou do 1984 de Orwell. As cenas chocantes que você lembra da escola ainda estão aqui, e igualmente vívidas, mas agora misturadas com a banalidade grotesca da rotina de escritório. Até mesmo na Sala 101 a papelada é um inferno.
Embora não me atreva a dizer que o romance de Newman é melhor que o de Orwell, acho que Julia é mais humano que 1984, o que, reconhecidamente, pode parecer absurdo dadas as intenções de Orwell. Mas Newman apresenta uma consideração mais completa da variedade de vidas sob um sistema político assassino e humilhante.
E o final dela – ah, se pudéssemos falar sobre o final! Ele dá um giro mais imprevisível que as caudas daqueles ratos loucos para comer os olhos de Winston.
Serviço
Julia
- Editora: Mariner (em inglês, sem previsão para o Brasil)
- Autor: Sandra Newman
- 385 páginas; R$ 256,22 (em inglês) | Ebook: 50,58
/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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