Em meados da década de 1990, a revista Veja publicou um conto de Dalton Trevisan intitulado Feliz Natal. Um conto, não. Uma paulada. Porque era a história de um estuprador e assassino, narrada em primeira pessoa e períodos curtos, pontiagudos. Li e reli e reli.
Havia, na biblioteca dos meus pais, um exemplar d’O vampiro de Curitiba. Corri à estante, peguei, abri e me deparei com: “No fundo de cada filho de família dorme um vampiro — não sinta gosto de sangue”. Aquilo era areia nos olhos. Bruto demais, e seco. Aquela voz enferma, febril, pusilânime. Ensurdecedora. Cada frase parecia desarvorada, os galhos desfolhados e encolhidos, talvez queimados. Eu fora mordido.
Mais ou menos na mesma época, comprei a coletânea 234. “Ministórias”, dizia a folha de rosto. E, nela, dividido em quatro fragmentos (228, 230, 232 e 234), reencontrei aquele conto natalino: “Periga pintar cadeia? Serve de exemplo pra mim. Ou de maior maldade. É o que vier. Aí um cara faz o mesmo? Garra uma de minha irmã, usou ela? No dia que eu encaro o tipo, fatal”.
As frases são curtas, a narração é entrecortada, mas os vazios da experiência são infinitos. E a voz inclui o leitor, a voz fala com ele, para ele. Como se estivessem sentados à mesa de um boteco, os horrores vadiando à frente dos olhos. Ivan Lessa dizia ler os contos de Trevisan em voz alta: de tão afiado, o estilo pode nos cortar. O bruto nos deixa aflitos.
Mais do que vozes da rua (embora muitas vezes também o sejam), são vozes vizinhas e, não raro, vozes internas — vozes que ecoam pelos corredores de casa. Os personagens dos contos de Trevisan estão no quintal, na sala, pelos quartos, na cozinha. Entre pequenas e grandes crueldades, circulam por esse mundo paradoxal, lugar ao mesmo tempo tão restrito e tão inclusivo, no qual se acotovelam tantos animais familiares.
Com sua genialidade, o homem me fez sentir pena das bonecas a certa altura de Ah, é?: “Reinando com o ventilador, a menina tem a ponta do dedo amputada. Desde então as três bonecas de castigo, o mesmo dedinho cortado a tesoura”. Duas frases, um conto inteiro, uma vida assim resumida, pois ali enxergamos (ouvimos?) que as bonecas são apenas o começo, as bonecas não são nem serão as únicas a sofrer.
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Mas existem exemplos de generosidade. Não? Em Dinorá, um daqueles “haicais”: “O marido, ao telefone: — Quando você vier para casa, não deixe a menina entrar no quarto — eu estou enforcado”. Por um momento, o mundo se divide entre os enforcados e as crianças que, mesmo avisadas, insistem em entrar no cômodo interditado. Se fecharmos os olhos, conseguiremos ver os pés balançando no vazio e ouvir os resmungos da corda amarrada à viga.
Já o narrador do conto O vampiro de Curitiba é um tipo especial de monstro, brasileiríssimo, um vampiro que flana por aí à luz do dia, ardendo de desejo, babando, os olhos delirando com as possibilidades: “Tarde demais, já vi a loira: milharal ondulante ao peso das espigas maduras”. Esse vampiro curitibano (brasileiro) não é um tarado qualquer. Acusa uma qualquer de desdenhosa, a “própria égua de Átila — onde pisa, a grama já não cresce”.
Sabemos em que pode resultar essa libido descompensada; nos piores casos, em descalabros como os descritos em Feliz Natal. São gradações de uma mesma violência. “Maldita feiticeira”, ameaça o vampiro, “queimá-la viva, em fogo lento.” E diz o narrador da história natalina: “Então fico na rua e tal. E fico zoando. Estou pra tudo. Pra morrer, pra matar. Certo? Muita deu sorte que não morreu”.
Assim, nos contos de Trevisan, há sempre uma tensa oscilação entre elipses e repetições. Estas adensam a impressão de um mundo que se retroalimenta com seus joões, marias e nelsinhos, com suas pequenas e grandes brutalidades; aquelas sublinham os interditos e radicalizam o que é dito naquele apreço modernista pela ponta do iceberg (ou, se preferir, pelo dedo da boneca) — para cada brutalidade exposta, há uma infinidade de brutalidades mais ou menos implícitas e sugeridas.
Graças a esse jogo acumulativo de procedimentos e ocorrências similares, pisados e repisados, é retirada da violência qualquer domesticidade. Como a forma jamais é pedestre, o que é narrado transcende os limites daqueles lares, terrenos baldios e ruas. A lâmina afiada do estilo impede a banalização das tragédias cotidianas. Naquela multidão de “desgracidos”, há sempre um rosto no qual nos fixarmos.
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