Em janeiro de 1923, Virginia Woolf saiu para a noite fria de Londres depois de uma festa na casa de sua irmã em Gordon Square. A noite fora uma delícia, com cantoria e vestidos chiques.
O melhor de tudo é que a festa estava cheia de amigos próximos e de longa data, a constelação que hoje conhecemos como Grupo Bloomsbury, que incluía Woolf e seu marido Leonard, além do escritor Lytton Strachey, do artista Duncan Grant e do economista John Maynard Keynes.
No seu diário, Woolf refletiu sobre a noite e sua atmosfera, a serena comunhão de velhos companheiros, antes de acrescentar uma curiosa reflexão: “Acho que Shakespeare teria gostado de todos nós esta noite”.
Meio estranho, não? Quantos de nós pensamos em Shakespeare – se é que pensamos nele – como alguém cuja aprovação imaginária ansiamos, uma indulgente figura paterna aquiescendo afavelmente à nossa escolha de amigos?
Os Apóstolos de Shakespeare
Shakespeare in Bloomsbury, de Marjorie Garber, traça a poderosa influência do dramaturgo sobre Woolf e seu círculo, começando com os eminentes vitorianos conhecidos de seu pai e passando pela escritora Frances Partridge, que morreu em 2004, aos 104 anos.
As origens do Grupo Bloomsbury não se encontram em Londres, mas na Cambridge da virada do século, nas amizades formadas entre os alunos integrantes da Conversazione Society, também conhecidos como Apóstolos.
Garber – professora de inglês em Harvard e figura significativa nos estudos modernos de Shakespeare – nos lembra que Cambridge não tinha departamento de literatura inglesa até 1917. Então, para os Apóstolos, o estudo de Shakespeare era “o que hoje chamaríamos de uma atividade extracurricular, realizada à noite e nos fins de semana”.
Para os jovens Apóstolos – Keynes, Strachey e Leonard Woolf, além de seu amigo Thoby Stephen (irmão mais velho de Virginia) – isso significava ingressar ou formar clubes como a Midnight Society, que se reunia todos os sábados tarde da noite para ler as grandes obras da literatura inglesa, em voz alta, até o amanhecer.
Woolf, a quem se negara a educação que seu irmão desfrutava, participava de longe. Em carta a Thoby, ela escreve: “Li Cymbeline apenas para ver se no grande William não haveria mais do que se supunha. E fiquei muito chateada. Agora verdadeiramente estou na companhia dos adoradores – embora ainda me sinta um pouco oprimida por sua... grandeza, creio”. De novo esse tom: adoradores, opressão da grandeza.
Aqui fica fácil lembrar da falsa deferência religiosa de Woolf em Orlando, quando a heroína resiste a tomar o santo nome em vão: “Ou foi Sh-p-re? (Pois, quando falamos nomes, reverenciamos profundamente a nós mesmos, nunca os falamos por inteiro)”. Existe uma relação com Shakespeare que vai além da mera apreciação estética. Em Cambridge, os Apóstolos brincavam de classificar seus heróis, ranqueando-os em graus de brilhantismo.
Apenas Platão e Shakespeare recebiam honras de primeira classe. É uma brincadeira de calouros: excessiva, até um pouco esquisita, apaixonada pelas ideias – e não pela materialidade – da grandeza. Mas isso nos leva mais uma vez a uma visão altamente personalizada do dramaturgo: Shakespeare como um dos Apóstolos, o estudante mais inteligente de seu ano.
Depois de Cambridge, vários integrantes do grupo de Bloomsbury continuaram pensando profundamente em Shakespeare. Como crítico de teatro, Strachey reprovaria a encenação predominante nas produções do início do século 20 com seus “gestos exagerados e seu movimento incessante”, para não mencionar “a intolerável lentidão na enunciação”.
Keynes, por sua vez, financiaria a construção do Cambridge Arts Theatre, onde o diretor Dadie Rylands – outro do círculo de Bloomsbury, embora uma geração mais jovem – colocaria em prática os princípios de Strachey, transformando as produções de Shakespeare ao formar e dirigir muitos dos atores de palco mais importantes do século.
De volta a Londres, T.S. Eliot – embora não pertencesse à realeza de Bloomsbury – declararia provocativamente Hamlet como “um fracasso artístico”, antes de argumentar que nenhuma ideia sobre Shakespeare poderia estar definitivamente correta: “A respeito de alguém tão grande (...) é provável que nunca estaremos certos. E, se nunca pudermos estar certos, é melhor que de vez em quando mudemos nossa maneira de estar errados”.
Em vez de um culto a Shakespeare, com sua adoração fervorosa e seus tabus sagrados, o sempre astuto Eliot sabia que, na melhor das hipóteses, o que podemos ver nas peças são os costumes da nossa época refletidos no espelho para nós.
Mas é Woolf – compreensivelmente – quem recebe a maior parte da atenção de Garber, e é aqui que as limitações do livro ficam mais claras. Com 100 páginas, o capítulo sobre Woolf é repleto de detalhes; mas, ao dividir as obras de Woolf em subseções individuais e tratá-las cronologicamente, relacionando suas referências explícitas e ocultas a Shakespeare, Garber quase nunca permite que seu material faça mais do que se acumular.
Para um grupo ultra-letrado, não é de se admirar que a turma de Bloomsbury discutisse Shakespeare ávida e regularmente – ou o citasse casual e livremente. O mais interessante é quando as coisas vão além disso: os momentos excessivos – possessivos até – quando a influência é mais estranha, menos previsível. Shakespeare in Bloomsbury nem sempre alcança esse equilíbrio, prefere ser exaustivo a ser analítico.
Garber claramente sabe muito sobre Shakespeare e Bloomsbury, mas não consegue reunir os dois temas numa síntese útil, preferindo algo mais programático, mais próximo da catalogação. Uma organização diferente teria ajudado.
Temas recorrentes poderiam ter se tornado capítulos: a mudança de gosto por certas peças; a tensão entre a leitura privada e as apresentações públicas, ou entre o novo realismo teatral e o piegas e obsoleto estilo do final da era vitoriana. Sem desenvolver ideias – limitando-se a simplesmente apresentar informações – Shakespeare in Bloomsbury muitas vezes parece uma fonte para outros livros: um compêndio, por vezes interessante, mas em última análise insatisfatório.
*Dennis Duncan é professor de inglês na University College London e autor de Index, A History of the.
/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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