A difícil, e deliciosa, vida dos livreiros: Conheça histórias de profissionais que vivem de livros

Como ter que adivinhar de qual livro os clientes estão falando sendo que nem eles sabem? Livrarias de São Paulo contam com ajuda de sistemas eletrônicos e redes sociais, mas ainda valorizam atendimento presencial e com conhecimento do acervo; conheça histórias

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Atualização:

“Estou procurando um livro que tenha um personagem livreiro. Você pode indicar algum?”, pergunta a reportagem do Estadão a quatro profissionais de livrarias de São Paulo com diferentes períodos de experiência. Um se lembra de um romance policial em edição esgotada do qual gostou muito, já outro lista de cabeça lançamentos recentes. Um terceiro faz uma breve consulta no computador para confirmar a nacionalidade de um autor. E o último admite que se identificou demais com uma história e abandonou a leitura. Todos procuram estender a conversa, e a indicação de livros cresce.

Cida Saldanha é a livreira mais conhecida de São Paulo, com mais de 35 anos de atuação. Foto: Werther Santana/Estadão

Livreiro é um nome carinhoso para a pessoa que trabalha em livraria, afirma Samuel Seibel, presidente da Livraria da Vila. O título pode se referir tanto ao proprietário da loja quanto ao vendedor de livros, que não raro são a mesma pessoa. “Para livrarias pequenas é quase uma necessidade”, explica Leo Wojdyslawski, proprietário e livreiro da Livraria Eiffel, na República, no centro de São Paulo.

Leo Wojdyslawsky, dono da livraria Eiffel. Foto: Felipe Rau/Estadão

Grandes ou pequenas, as livrarias costumam ter atendentes com repertório cultural para indicar livros. Esse “livreiro-leitor”, segundo Seibel, “é alguém aberto a dizer que não leu (um livro), mas conhece o autor e cita outros, ou que junto com o cliente lê a quarta capa de um livro e ajuda na identificação do tema”.

Samuel Seibe na Livraria da Vila do Shopping Pátio Paulista. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

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Para uma livraria especializada, como a Eiffel, de arquitetura e urbanismo, pode ser mais difícil encontrar outros livreiros que conheçam o acervo. Mas o importante é que tenham curiosidade para aprender sobre ele, afirma Paulina Cho, uma das sócias da Aigo Livros, inaugurada em julho do ano passado no Bom Retiro.

Focado na literatura de povos imigrantes, o acervo da livraria é composto por muitos livros já lidos por Paulina, advogada com mestrado em Estudos Globais na China. “São livros que eu sempre procurei na minha própria vida”, diz ela, sentada no chão da loja com a reportagem.

A livreira cresceu no Bom Retiro, onde “numa caminhada você escuta pessoas falando espanhol, ídiche e coreano”, e considera que a proximidade com a comunidade do bairro a ajuda a recomendar livros. “Essa experiência mais diversa sempre me fez estar curiosa para entender outras narrativas.” A depender de qual sócia estiver na loja, o atendimento pode ser feito em outros idiomas além do português, como inglês, espanhol, coreano e mandarim.

Paulina Cho, uma das sócias da Livraria Aigo, especializada em literatura imigrante, com foco nas comunidades do Bom Retiro. Foto: Werther Santana/Estadão

À moda antiga

Com quase 50 anos de trabalho em livrarias, de faxineiro a gerente, Marciano Lourenço de Souza é hoje o livreiro mais antigo da Livraria Martins Fontes, atendendo das 7h às 19h no terceiro piso da unidade da Avenida Paulista. “É um batente pesado e interessante”, diz ele, natural de Camocim de São Félix (PE).

O livreiro de 65 anos viu a modernização do ofício, mas carrega aprendizados do sistema de classificação de livros que usava antes da chegada do computador. Ao separar obras pelos assuntos gerais e suas divisões, como história, que pode ser dividida em mitologia, história antiga, história moderna, etc., e não pelos nomes dos livros e dos autores, ele aprendia e conseguia ligar um livro a outro durante o atendimento.

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“Quando você classifica e separa, você aprende só no olhar, não precisa ficar digitando no computador [para procurar um livro]. [O computador] é uma ferramenta que ajuda muito, só que é necessário o conhecimento”, explica Marciano, que trabalha com um acervo de mais de 200 mil títulos.

Marciano Lourenço de Souza, 65 anos, livreiro na unidade da Livraria Martins Fontes na Av. Paulista, 509 em São Paulo.  Foto: Daniel Teixeira / Estadão

“Antigamente você tinha que saber mesmo (dos livros)”, concorda Cida Saldanha, livreira há 40 anos, sendo 33 deles somente na Livraria da Vila. “Mas não acho que seja melhor antes. É mais legal hoje”, diz, aos 67. Ao longo dessas últimas décadas, ela testemunhou chegada de novas gerações e hoje atende também os filhos de seus clientes antigos.

Redes sociais

Por morar perto da loja, Cida não sentia a necessidade de ter um celular até 2019, quando comprou o primeiro aparelho. Hoje, além de ler resenhas de livros em jornais e revistas e o que tem à disposição na livraria, ela acompanha as novidades literárias também por canais do YouTube dos chamados booktubers.

Cida Saldanha, livreira há mais de 35 anos, não sentia a necessidade de ter um celular até 2019, quando comprou o primeiro aparelho. Foto: Werther Santana/Estadão

Já Paulina, com 33 anos, se informa principalmente pelas redes sociais, como Instagram e TikTok - não só sobre livros novos, mas também sobre assuntos do dia que podem chegar à livraria. “Se Luísa Sonza está falando de poliamor, então tenho que saber. Vieram muitas pessoas querendo indicação de livro de poliamor e falar de poliamor. Você não precisa saber, mas quer continuar a conversa”, diz.

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Na Livraria Megafauna, localizada no Edifício Copan, na República, a gerente Flávia Santos, de 39 anos, não está no TikTok, mas descobre o que faz sucesso na rede social pelo aumento da procura de um livro pelos clientes. Para a curadoria de autoria negra que faz na livraria, contudo, ela precisa “cavar nas editoras”.

Quando precisa adivinhar um livro pela descrição do conteúdo ou da capa que um cliente faz, a livreira usa sua experiência de 15 anos em livrarias, além da consulta semanal dos lançamentos editoriais que faz na Metabooks, ferramenta de metadados que usa na reposição.

Um grande leitor

Formada em Letras/Russo e Design Gráfico e atualmente estudante de Artes Visuais, Flávia costuma ler na Megafauna, principalmente poesia. “É o ponto alto para a gente que é livreiro.” A leitura não é autorizada em todas as livrarias, mas ela defende que no escopo do trabalho deveria ter um momento de ócio para folhear os livros.

Flávia também vê como necessária uma revisão da escala 6x1 - em que profissionais, incluindo livreiros, trabalham seis dias e folgam um. “Como é que você vai fazer um atendimento bom se nas livrarias de shopping você não pode ler o livro e no seu tempo livre, que é um dia da semana, você tem que cuidar da vida?”, pergunta ela. Seu esquema de trabalho é diferente, mas ela vê colegas de outras livrarias não terem tempo de lazer.

Flávia Santos, 39 anos, coordenadora da livraria Megafauna. Foto: Taba Benedicto/ Estadão

Marciano, além de ler em casa, no município de Poá, a 42 quilômetros de São Paulo, costumava ler no transporte público. Isso já não é mais possível, por causa dos ônibus e trens lotados. Já Cida lê no horário de almoço, na própria Livraria da Vila. Para Paulina, da Aigo, a leitura continua sendo seu descanso enquanto espera.

Outras experiências

Os livros lidos na livraria contribuíram para Flávia escrever sua segunda coletânea de poemas, Corpo Lúcido, a ser publicada em abril pela Diadorim Editora. “Porque para escrever você tem que ler bastante, e a livraria ajuda nisso de ser um grande leitor”, diz ela.

A experiência como livreira de Cida, por sua vez, a levou a participar por nove vezes do júri do Prêmio São Paulo de Literatura, um dos trabalhos que mais gosta de fazer. “Você descobre coisas incríveis, sente o que o Brasil está pensando.” Na edição de 2023, ela viu, nos 330 livros que avaliou, questões de gênero, ecos da pandemia, relacionamentos complicados entre mães e filhas.

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Unidade da Livraria da Vila na Vila Madalena, onde Cida Saldanha trabalha.  Foto: Werther Santana/Estadão

Estar no mundo

Livreira há apenas seis meses, Paulina, que já trabalhou em outras áreas, diz que a experiência na Aigo foi a que mais exigiu dela até hoje. “Aqui eu realmente sinto que tenho que usar todas as minhas habilidades, todos os meus conhecimentos.” Já Marciano trabalha com livros desde 1974, mas garante que continua tendo muito carinho e dedicação plena. “Até dormindo eu sonho [que estou] trabalhando com livro.”

“É uma profissão muito prazerosa”, afirma Cida no café da Livraria da Vila, lembrando-se de clientes que atendeu. “Porque você conhece muita gente interessante, você se mantém viva, você está no mundo. Lembro até do Paulinho da Viola, ele fala isso: ‘meu tempo é hoje’. Não sou novinha, mas meu tempo é hoje.”

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