O que une um personagem da República de Platão, o pensador pós-moderno francês Michel Foucault e o teórico nazista alemão Carl Schmitt? Pouca gente dirá que a resposta seja a esquerda woke ou identitária. Pois é isso – e muito mais – que o leitor encontrará de surpreendente no livro da filósofa americana Susan Neiman.
Em A Esquerda Não é Woke, que a Editora Âyiné publica agora no Brasil, a autora não ouviu os muitos alertas de amigos (de esquerda, como ela) para que não mexesse nesse vespeiro e decidiu pegar a fera pelos chifres: reivindicar para a esquerda a herança da tradição Iluminista, erguer mais uma vez a bandeira do universalismo e rechaçar as tendências da esquerda contemporânea que atendem pelo nome de woke. Ao fazê-lo, Neiman produziu um livro acessível, de leitura fluente e não acadêmico, ainda que sem abrir mão de sua palpável erudição e aguda capacidade analítica.
No coração de seu argumento está a tese de que a verdadeira genealogia do wokismo encontra-se em pensadores alheios à vibrante tradição intelectual da esquerda defendida por ela.
É nesta genealogia que, para a surpresa de muitos bons leitores, a figura de Trasímaco, o jovem amoralista que na República afirma que a justiça é simplesmente uma conversa-fiada para enganar os tolos, aparece lado a lado de Michel Foucault – que, na visão da autora, é apenas uma versão renovada e academicamente mais brilhante do mesmo amoralismo sofístico antigo.
Para que possamos compreender melhor como a explicação de Susan Neiman está estruturada, vale a pena recuar um pouco e reconhecer terreno em que se está pisando ao falar de woke ou identitarismo.
Ao longo dos anos 2010, tornou-se gradativamente dominante no cenário político americano um tipo de discurso à esquerda no espectro político que mais e mais centrava-se nas identidades (raças e gêneros sobretudo, mas não apenas), relegando a segundo plano velhas e costumeiras questões de classe social, situação econômica e cidadania política – tradicionais pautas da esquerda, que as lia pelas lentes da inclusão e do igualitarismo.
Ora, qual o problema desse protagonismo das identidades? Em si mesmo, nenhum, responde Neiman. Pelo contrário, todos reconhecem na linguagem das emoções que o chamado movimento woke ou identitário emprega aquela mesma linguagem das emoções que tradicionalmente definia a esquerda – a saber, “empatia pelos marginalizados, indignação com a situação dos oprimidos, determinação na busca de que os erros históricos sejam corrigidos”.
Ocorre que, a despeito das genuínas boas emoções que estão na origem do woke; apesar da bondade e correção de suas intenções, seus defensores, na verdade, aderiram a conceitos, teorias e visões de mundo abrangentes que, na verdade, são a antítese de tudo aquilo que a esquerda deveria buscar. Em suma, têm a teoria errada para os propósitos certos.
Neiman dedica o primeiro capítulo a mostrar que a esquerda deveria se manter fiel à tradição do universalismo, a tudo aquilo que temos de comum e que pode unificar lutas, reivindicações e realizações humanas. Com isso, afirma que se deve rechaçar o tribalismo que caracteriza a atual política identitária encontrada em nomes tão diversos como Judith Butler e Ibram X. Kendi, um tribalismo que “não apenas reduz os múltiplos componentes de nossas identidades a um só: ela essencializa o componente sobre o qual temos menos controle”, o gênero ou a raça.
No segundo capítulo, autora sustenta que a esquerda deveria se manter fiel à crença na justiça, que apesar de todas as falhas, não deveria ser percebida como mero exercício hipócrita do poder, pois se não há justiça de fato, pouco nos resta além do amoralismo aterrorizante de Foucault, para quem só o que há é o poder em estado bélico permanente, que ocasionalmente, “assume a forma de paz e de Estado”, fazendo da “paz uma forma de guerra, e do Estado um meio de travá-la”.
Que esse raciocínio ecoe teses do nazismo de Carl Shmitt e tenha sido encampado como retórica de parte da esquerda para afirmar que toda a história humana nunca foi mais do que um amontoado de casos de puro poder cinicamente travestido de justiça, direitos, democracia ou paz, é algo assustador.
À defesa do universalismo e da distinção real entre justiça e poder Neiman acrescenta, no terceiro capítulo, a convicção no progresso que sempre animou os ideias iluministas, bem como um amplo espectro ideológico no século 19, com destaque para o pensamento de Karl Marx. Contra a aposta iluminista, é novamente Foucault quem se destaca como guru da esquerda woke, resumindo a história da humanidade a uma mera substituição de violências, “prosseguindo, assim, de dominação em dominação”.
Universalismo, justiça, progresso: todos esses princípios, argumenta Neiman, podem ser compartilhados pelos liberais e pela esquerda de matriz iluminista a que se filia a autora. Nenhum deles define a esquerda woke. E a razão apresentada pela filósofa é que as fontes intelectuais da política identitária não são iluministas, muito menos de esquerda.
O pós-moderno Foucault comparece, na leitura de Neiman, até mesmo como possível porta-voz do neoliberalismo, e o escândalo da autora com o interesse da esquerda nas posições tribalistas reacionárias de Carl Shmitt transparece a cada linha. Como explicar, então, que tenham enfeitiçado a esquerda? A resposta de Neiman é simples: as críticas de ambos ao liberalismo serviram como uma luva a certas parcelas da esquerda.
É possível que esse diagnóstico de Neiman não seja tão convincente: o problema da esquerda woke seria precisamente não ser de esquerda. O woke repousaria sobre uma teoria “de direita”. Isso não diminui o interesse do livro, que apresenta um caso forte para a recusa do identitarismo como forma de fazer política.
Se o que deverá ser feito em seu lugar há de se nortear pelos ideais socialistas de Neiman, ou, quem sabe, pelas convicções de justiça da tradição do liberalismo político de seu orientador em Harvard, John Rawls – bem, essa é já outra questão.
A Esquerda Não é Woke
- Autora: Susan Neiman
- Editora: Âyiné (240 págs.; R$ 99,90)
- Lançamento: 27/3, às 19h, na Livraria da Travessa de Pinheiros (Rua dos Pinheiros, 513). Haverá debate entre a autora, Eduardo Wolf e Jerônimo Teixeira
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