Esta é a história de uma moça tão pobre que só comia cachorro-quente. Mas não só. É a história de uma inocência pisada, de uma miséria anônima. Assim a escritora Clarice Lispector descreve, numa rara e lendária entrevista à TV Cultura, o último romance que lançou em vida, A Hora da Estrela.
Mais realista obra da autora, e, por isso, uma das mais populares – também por causa do filme de Suzana Amaral que rendeu a Marcélia Cartaxo o Urso de Prata em Berlim – e a mais vendida, ela foi lançada em outubro de 1977. No fim daquele mês, Clarice foi hospitalizada para tratar de um câncer. Menos de um mês e meio depois, em 9 de dezembro, um dia antes de completar 57 anos, ela morreu. A nova edição de A Hora da Estrela que chega esta semana às livrarias, celebra, assim, os 40 anos do romance e presta homenagem a uma das mais cultuadas escritoras brasileiras.
No volume, em capa dura, acompanhamos por meio da reprodução de manuscritos a gênese de Macabea, a heroína insignificante por quem nos compadecemos e torcemos, e os dilemas do escritor Rodrigo S. M., que nos conta esta história. Acompanhamos, principalmente, o modo de produção de uma escritora que ignorava, mas já era corroída pelo câncer e que anotava frases e observações ora com letra caprichada, ora com garranchos.
Aos leitores, está sendo apresentada uma seleção desses manuscritos de A Hora da Estrela, organizados num caderno de imagens. Mas a escritora e professora universitária Paloma Vidal foi convidada pela editora Rocco a dar um mergulho nas caixas de Clarice abrigadas no Instituto Moreira Salles. O resultado da experiência desse encontro é contado na crônica Antes da Hora, que abre o volume.
Paloma nos guia pela pequena sala envidraçada e iluminada artificialmente, pela caixa branca que guarda as 34 pastas de cor creme e tamanhos diversos, pelos papeizinhos, envelopes, talões de requisição de cheques, folhas soltas, blocos, enfim, tudo o que servia de suporte para suas ideias, frases, lembretes – e para o último bilhete, escrito no Hospital da Lagoa no dia 7 de dezembro. Um mergulho numa escrita, sempre fragilizada, que vem de repente e não pode ser contida, como coloca Paloma, ou que é planejada, escrita e depois reescrita.
“É muito impressionante ver como essas anotações se transformam no livro. Ela faz uma colagem que não segue uma linearidade porque esses fragmentos vão sendo escritos em tempos diferentes. Em contraste, tem a linearidade da história. É interessante como ela tinha na cabeça uma narrativa com começo, meio e fim – que, embora condensada, é a história da Macabea saindo do sertão e indo para o Rio de Janeiro, e de seu fim. E os manuscritos deixam isso evidente”, comenta.
O contato com esse material, ela conta, mudou sua relação com A Hora da Estrela, lido na faculdade de letras. “Ele junta dois universos: a representação da história de uma figura marginal, pobre, sofrida e o aspecto mais introspectivo. O que me impactou nesse livro foi a possibilidade de poder fazer uma espécie de fusão, que os manuscritos mostram muito bem como ela experimentou com isso, com essa narrativa mais linear que vai sendo cortada, interrompida, fragmentada pelo personagem do escritor.”
Tradutora de A Legião Estrangeira e de Um Sopro de Vida para o espanhol, Paloma diz que tem uma relação muito forte com a literatura de Clarice, embora não seja especialista nela. “Minha primeira lembrança foi do impacto da leitura, quando eu era bem jovem, de A Paixão Segundo G. H. Fiquei muito impressionada com o que dava para fazer com literatura. Foi uma espécie de furacão. Eu não tinha lido nada que se parecesse com aquilo, uma literatura de muito aprofundamento na subjetividade, muito concentrada numa cena só, num lugar só.”
A crônica de Paloma é entremeada de alguns dos manuscritos que chamaram a sua atenção na visita ao IMS. A obra conta, ainda, com seis ensaios – alguns deles publicados na época do lançamento do romance, como o de Eduardo Portella que constava da primeira edição, da José Olympio, e outros mais recentes, como o do escritor Colm Tóibín, escrito para a edição americana de A Hora da Estrela, de 2011. Há, ainda, textos de Hélène Cixous, Florencia Garramuño, Nádia Battella Gotlib e Clarisse Fukelman.
Novas edições. Em 2016, a Rocco lançou Todos os Contos. Era o primeiro de uma nova safra da editora que detém, desde 1998, os direitos de publicação da mais cobiçada autora brasileira. Menos elaborada que a que chega agora às livrarias, mas com um projeto gráfico diferente do usual, ela trazia apenas os contos por data de publicação. No ano que vem, de acordo com o editor Pedro Vasquez, está previsto o lançamento de Todas as Crônicas, nos mesmos moldes da coletânea de contos. Também em 2018 começam a sair, gradativamente, edições repaginadas, com novas capas e fonte maior, de todos os volumes de Clarice.
A Rocco não revela número de vendas, mas em março, 40 anos depois do lançamento, o derradeiro romance de Clarice Lispector era o 8.º livro nacional mais vendido do ano pela lista Nielson/PublishNews.
A HORA DA ESTRELA Autora: Clarice Lispector Editora: Rocco (224 págs.;R$ 44,50;R$ 29 e-book)
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