O projeto de Andrew Scull é ambicioso, talvez desmedido: esboçar uma história da loucura, da antiguidade aos nossos dias. O título - Loucura na Civilização: uma história cultural da insanidade (Edições Sesc, 560 páginas) - traz algumas precisões, que o autor detalha logo de início.
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Não se trata de fazer uma história da psiquiatria, termo que se torna corrente apenas no século 19. Nem de atenuar termos como “louco”, “louca” ou “loucura”, ou “insanos”, ou “alienados”, palavras portadoras de estigma social, e trocá-las por expressões mais amenas, o que seria prudente sobretudo em nossa época de eufemismos. Nelas há uma carga tanto simbólica quanto estigmatizante, que o autor deseja preservar.
Trata-se então de resgatar essa história mais que milenar, em que pessoas vistas como fora dos eixos da razão, ou destoantes de comportamentos ditos normais, eram definidas por palavras como estas ou outras semelhantes.
Através das idades, a loucura não representou somente um problema para as sociedades. Também fascinou e amedrontou. Desse medo e fascínio, surgiram romances, peças de teatro, pinturas, esculturas e filmes nela inspirados. “A desrazão continua a assombrar a imaginação e a emergir de formas poderosas e imprevisíveis”, escreve Scull, sociólogo britânico de 76 anos, dono de prosa ágil e envolvente.
Por outro lado, Scull nomeia os diferentes representantes da “sociedade sadia” encarregados de se ocupar dos loucos e do perigo que oferecem. Religiosos e feiticeiros, em primeiro lugar. Mais tarde, administrando as instituições destinadas a encerrá-los e retirá-los do convívio social - as chamadas “casas de loucos”, os hospícios e asilos.
Em seguida, a apropriação dos loucos pela medicina e as formas empíricas (e muitas vezes bárbaras) de tratamentos que tentavam conduzir esses pacientes de volta à razão. Entre esses tratamentos, os famigerados eletrochoques e lobotomias. Depois, a chegada da psicanálise que, contrariando expectativas, teve grande influência no tratamento de pacientes nos Estados Unidos. Pelo menos até ser desbancada pela psiquiatria associada à indústria dos chamados psicofármacos.
Não se trata propriamente de uma história “das trevas à razão”, como poderia parecer. Ou seja, a do encarceramento e tratamentos brutais à leveza dos fármacos que intervêm num cérebro já (pelo menos em parte) desvendado pelas neurociências. Essa trajetória em linha reta seria muito apaziguante - e enganadora. Scull é honesto.
Admite que, apesar de haver passado tanto tempo e tanto progresso sido feito pela ciência, a loucura continua um enigma, uma equação irresoluta: “...Ressaltarei quão longe continuamos de qualquer compreensão adequada das raízes da loucura, e, mais ainda, de respostas eficientes para as desgraças que ela traz consigo”.
Porém esse caminho, que talvez dê num beco sem saída, não deixa de ser fascinante. Começa pela antiguidade, entre os hebreus que, como muitos no mundo antigo, tentavam explicar o assustador mundo dos insanos pela possessão por espíritos malignos. Ou pela maldição dos deuses. A loucura de Saul seria uma maldição de Deus, como aparece no livro de Samuel. Os “sintomas” de Saul, como alterações de humor e o ataque homicida a seu próprio filho, Jônatas, são descritos no Antigo Testamento. Apenas o pastor Davi, com sua harpa, mostra-se capaz de, pelo menos temporariamente, apaziguá-lo. Um precursor da musicoterapia, poderia-se dizer.
A esfera religiosa, como se poderia prever, dominou por longo tempo tanto o “diagnóstico” como o “tratamento” da loucura, se for permitido o uso anacrônico desses termos da medicina moderna. Mesmo no Império Bizantino, com o catolicismo ainda dominante no mundo ocidental, “as noções de cura espiritual e possessão demoníaca” estavam bem estabelecidas como certezas inquestionáveis.
A crença em demônios e o poder da cura religiosa eram aceitos não apenas entre a população mais simples, mas entre os poderosos e os sábios. Às orações e exorcismos se acrescentavam outros métodos mais drásticos, como ferro em brasa, pois, como se sabia, demônios têm aversão ao ferro.
Na Idade Média e no período da Contrarreforma, as coisas não melhoraram para os alienados. Pelo contrário. Milhares de mulheres (especialmente) cujo comportamento era tido como desviante, foram encarceradas como bruxas e submetidas ao tratamento dispensado pela Santa Inquisição. Sob tortura, confessavam pacto com forças demoníacas e eram conduzidas à fogueira. Scull calcula que entre 50 mil e 100 mil “bruxas” tenham tido esse destino na civilizada Europa.
Enquanto isso, a loucura deixava suas marcas na cultura - no teatro, com Shakespeare (em Hamlet), na literatura com Ariosto (Orlando Furioso), em Cervantes (Dom Quixote), na filosofia com Erasmo (Elogio da Loucura), na pintura, com Bosch (A Nau dos Loucos e A Extração da Pedra da Loucura).
A Nau dos Loucos, ou dos Insensatos, era um tema alegórico recorrente do imaginário renascentista, aparecendo sob a pena ou o pincel de diversos artistas. Michel Foucault (1926-1984) dedica-lhe um capítulo em sua História da Loucura na Idade Clássica, designando o tema por sua expressão latina - Stultifera Navis.
A força de tais imagens teria seduzido Michel Foucault levando-o a abraçar “a noção completamente equivocada de que essas poderosas pinturas eram representações de algo real, não mera imaginação artística”, como critica Scull.
Não será a primeira vez que a lógica realista do autor se chocará com interpretações mais imaginativas, poéticas ou filosóficas de outros autores. Isso ficará mais claro quando abordar a psicanálise, como se verá mais adiante. Se essa atitude mais pé no chão o mantém preso aos fatos e à pesquisa (notável e documentada, diga-se), poderá embotar sua sensibilidade para pegadas mais filosóficas ou mesmo ensaísticas e ousadas, como as de Foucault, e mesmo Freud ou Lacan.
Foucault usa o tema da nau dos loucos para comparar um tempo em que a loucura andava à deriva, entre rios e mares, e outra, em que se viu aprisionada em edificações construídas para abrigar - e segregar - párias sociais. Scull também chamou esse processo de “o grande confinamento” e deu esse título a um capítulo. Era uma época de disseminação dos hospícios, instituições mantidas do início do século 17 até aproximadamente a nossa era.
Como ilustração, pode ser citado o filme recente (disponível na Netflix) em que a diretora Daniela Arbex registra os horrores do hospital psiquiátrico Colônia, em Minas Gerais, responsável pelo encarceramento de dezenas de milhares de internos ao longo de décadas de funcionamento. Sintomaticamente, o filme chama-se Holocausto Brasileiro. Estima-se que mais de 60 mil pacientes tenham morrido entre os muros da Colônia.
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O lado autoritário do confinamento foi muito tratado pelas artes - em particular pelo cinema - a partir do momento em que instituições desse tipo passaram a ser questionadas. Elas confinavam os loucos mas também indesejáveis de todos os tipos. Bêbados, vadios, esposas rebeldes, revoltados políticos, gente, enfim, que não se enquadra nas normas era remetida para trás dos muros.
Como não se sabia exatamente o que fazer com essa população, a imaginação dos médicos corria solta e proliferava a invenção de métodos terapêuticos. Muitos deles notáveis pela crueldade. Correntes, camisas de força e outras formas de contenção eram comuns. Intervenções cirúrgicas com trepanações e lobotomias eram vistas como solução. Eletrochoques pareciam uma forma científica de terapia e não castigos aplicados aos recalcitrantes. A lista de procedimentos cruéis é quase infindável. Fiquemos por aqui.
Essa violência dos métodos psiquiátricos acabará chegando à sociedade, que passará a questioná-los. Talvez o filme mais famoso sobre o assunto seja O Estranho no Ninho, de Milos Forman. Jack Nicholson faz o papel de um marginal irreverente e indomável, que diagnosticado como antissocial, acaba parando num hospital psiquiátrico. Lá promove tal fuzuê que a equipe médica não vê alternativa senão submetê-lo a eletrochoques e, por fim, a uma lobotomia radical que fará dele um legume sem vontade própria. Apenas a morte o liberta do peso da instituição.
No final do século 19, um médico vienense faz seu estágio em Paris, no Hospital La Salpetrière, com o mestre Charcot, conhecido pelo tratamento de doentes chamadas “histéricas”. Na volta a Viena, Freud instala sua clínica e, cheio de imaginação, acaba por criar um método novo, que terminará chamado de psicanálise. “A cura pela fala” como o batizou uma das pacientes.
Apesar das reticências da medicina tradicional, que se havia apropriado do tratamento dos loucos, a psicanálise acabou prosperando. Fascinou escritores, artistas e cineastas (a admiração dos surrealistas era a mais notória, nas primeiras décadas do século 20).
Embora a contragosto, Freud viaja aos Estados Unidos para, numa série de conferências, divulgar suas descobertas. Para sua própria surpresa, a psicanálise, já devidamente domesticada e adaptada ao american way of life, se expande e torna-se dominante. Freud morre em 1938 e não chega a ver toda essa expansão em terra inculta, como ele considerava os EUA.
A psicanálise norte-americana avança e domina o mercado, pelo menos até a chegada dos medicamentos chamados psicoativos, que, adotados alegremente pela psiquiatria, começam a substituir métodos terapêuticos longos, dispendiosos e de incerta eficácia, como eram vistos a psicanálise e seus derivados. Esse troca de guarda, que não se dá sem choro e ranger de dentes, acaba por se impor, ao menos na Europa (Inglaterra em especial) e nos Estados Unidos.
Não se acaba de ler o livro de Andrew Scull sem certa surpresa. Se ele trata com desdém Freud e a psicanálise, nem por isso se torna um apologista da nova psiquiatria que, associada à indústria farmacêutica, passa a se ocupar não apenas dos loucos, mas de sociedades inteiras mantidas à base de Prozac e Rivotril. Os remédios são caros, os doentes são crônicos e o lucro dessas empresas conta-se em bilhões de dólares a cada ano.
Se a psicanálise era tida como imprecisa ou fantasiosa, os métodos científicos da nova psiquiatria, apoiada pela nova farmacologia, garantiriam a objetividade de diagnóstico e tratamento dos distúrbios mentais. Um livro-base foi criado pela poderosa Associação Americana de Psiquiatria e tornou-se bíblia de profissionais, profissionais da saúde mental e estudantes no mundo todo.
De primeiras edições magrinhas, encorpou até se tornar assustador catatau descritivo de um sem-número de padecimentos psíquicos, com seus sintomas e prescrições terapêuticas. A edição brasileira do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Edição Artmed), o popular DSM-5, contém nada menos que 992 páginas com letras em tipo miúdo.
Mas, como diz Scull, tanta objetividade mostrou sérios limites. O manual, símbolo dessa racionalidade médica, tem sido atacado e, às vezes, por cientistas do próprio campo. O prestigiado psiquiatra Thomas Insel afirmou que o manual “carecia de validade científica”.
Mais: seria meramente descritivo, permanecendo na superfície dos sintomas da loucura, sem penetrar em sua essência e sem estabelecer sua etiologia - quer dizer, as causas que levariam a ela. As formulações da neurociência, tão produtivas no esclarecimento de alguns aspectos relativos ao cérebro humano, mostraram-se ineficientes na questão da loucura.
Em muitos sentidos - e esse é o fim da trajetória - a loucura continua a ser um enigma. Sua história confunde-se com a da própria civilização. A loucura continua a olhar para a razão, suposto apanágio da espécie, e a desafiá-la.
Loucura na civilização: uma história cultural da insanidade
Autor: Andrew Scull
Tradução: Humberto do Amaral
Editora: Sesc Edições, 560 págs; R$ 80,49
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