Ícone da moda, amiga de Coco Chanel, uma das mulheres mais elegantes de sua época e talvez a maior paixão de Getúlio Vargas. Esta é Aimée de Heeren (1903-2006), que, apesar de ser considerada a maior socialite do Brasil no século 20, tem uma trajetória pouco conhecida pelo grande público.
O livro A Bem-Amada: Aimée de Heeren, A Última Dama do Brasil (Todavia), do jornalista e escritor Delmo Moreira, conta, com base em um grande trabalho de pesquisa, a trajetória desta mulher que dividiu a vida entre Brasil, Estados Unidos e Europa e cuja história se mistura com as mudanças políticas, sociais e culturais de seu tempo.
Nesta entrevista, Emanuel Bomfim e Leandro Cacossi, apresentadores do programa Fim de Tarde, da Rádio Eldorado, conversam com Moreira sobre o livro, a vida de Aimée, por que ela se mantinha longe dos holofotes e como sua vida está ligada à história do País e do mundo. Leia a seguir os destaques da entrevista. Ou ouça aqui a conversa na íntegra
Aimée de Heeren esteve presente em círculos da alta sociedade, lidava com pessoas poderosas, mas é uma figura pouco conhecida. Como você explica essa contradição?
Pelo tipo de trajetória que ela teve. É uma mulher que nasceu no interior do Paraná e, quando era adolescente, foi morar no Rio de Janeiro com a família. Eles eram ligados aos Simões Lopes, uma família de políticos importantes e fazendeiros do Rio Grande do Sul. Ela se casa com o Luiz Simões Lopes, o chefe de gabinete do Getúlio Vargas. Ele também é o sujeito que praticamente inventou o DASP [Departamento Administrativo do Serviço Público] e que, depois, fundou a Fundação Getúlio Vargas.
Enquanto ele trabalhava com Getúlio, Aimée começou a ter um romance secreto com ele. Ela era uma mulher tão discreta que namorou o presidente da República no Rio de Janeiro e isso jamais saiu em jornais. Em todos os livros publicados sobre o Getúlio até o final do século 20, não aparece o nome dela. O nome dela só vai se tornar realmente público e vinculado a Getúlio quando a neta dele, Celina Vargas do Amaral Peixoto, publica os diários do avó, em 1995.
Foi após a mãe morrer, que ela pegou 13 cadernetinhas de capa preta e lombada verde, em que Getúlio anotava o dia a dia, de 1930 até o final de 1942. Quando saíram em 1995, descobriu-se ali que ele tinha, justamente na época em que estava preparando o golpe do Estado Novo e nos primeiros meses dele, vivido uma paixão doida, na qual ele agia como um adolescente, e que sabia que tinha um risco grande de se tornar público - um risco político e familiar.
Era uma sociedade muito mais conservadora.
Exato. Quando o caso dos dois é descoberto, ela se separa de Simões Lopes e vai para a Europa, um pouco antes da guerra. Chega a Paris em 1939 e começa a frequentar a alta sociedade parisiense. Naquele ano, ela já está no último grande baile de Paris antes da chegada dos alemães como uma figura importante. Logo depois, ela se casa com um americano multimilionário, o herdeiro da rede que inventou a loja de departamento nos Estados Unidos, a Wanamaker’s. Os dois viveram até o final da vida casados, embora tivessem, a partir de determinado momento, vidas separadas.
Aimée teve vários casos e sempre viveu nesse mundo como uma socialite. Ele também tinha os casos dele, mas ela começa a viver entre a alta sociedade europeia e americana e vira uma figura fundamental, por exemplo, para a moda do século 20. Ela era a amiga da Coco Chanel, começa a usar Dior quando o [Christian] Dior ainda não era ainda famoso. Vários vestidos dela foram doados ao museu do FIT [Fashion Institute of Technology] em Nova York. Você praticamente pode contar a história da moda do século 20 por meio da história dela. Logo que ela saiu do Brasil, em 1942, a revista Time a elegeu como uma das dez mulheres mais bem vestidas do mundo.
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Mesmo depois de 1995, quando foram publicados os diários de Getúlio, ela continuou sendo uma figura que não chamou muita atenção. Por quê?
Ela se recusava falar. Ela dava entrevistas mentindo. Achava que a vida privada dela valia muito para torná-la pública. Quando falavam de fazer um livro sobre ela, algo que vários jornalistas tentaram quando ela era viva, ela recusava. Ela dizia assim: “As pessoas só se interessam por crime e sexo. Crime não tem na minha vida, e de sexo eu não vou falar.”
Ela tem essa quase contradição de ser uma celebridade com uma vida pouco conhecida. Era mais conhecida lá fora. Quando ela morre, não sai nada aqui. Já o New York Times dá um obituário de duas páginas e a chama de “última dama” da Era de Ouro, de 1960, 1970.
Além da questão do Getúlio e da moda, tem, no livro, um pouco da vida dessa aristocracia, de como eles viviam. É um pouco como entender o que eram essas pessoas, como passaram por esses anos todos, pela guerra, e por que aquele tipo de vida, que era muito típica dos anos dourados, parou de existir.
Como Aimée entrou na sua vida? Por que você quis investigar sua trajetória? E já que ela dava poucas entrevistas, como garantir substância para o livro?
Era um nome que me atraía e eu fiquei muito curioso quando saiu o diário do Getúlio e fizeram reportagens sobre ela. Porque ela não falava, não tinha a voz dela. Eu já a achava que uma figura misteriosa. Um dia, conversando com um amigo, eu disse: Gosto de tratar a minha história meio que do rodapé. É você pegar um fato que está quase no rodapé da história e descobrir uma maneira de contar e fazer várias leituras sobre isso para a pessoa, quando ler, dizer: ‘Pô, que história legal, como é que eu não conhecia?’.
Aimée tinha isso também. Eu comecei a fazer uma pesquisa até que consegui uma entrada no que sobrava da família dela aqui no Brasil. Fui me animando e fiquei dois anos pesquisando livros, revistas e jornais daqui, dos Estados Unidos e da França, principalmente as colunas sociais desses jornais, e conversando com gente que conviveu com ela.
Ela não deixou herdeiros, então?
Ela deixou uma herdeira, uma filha, que é uma dama espanhola - uma fazendeira na Espanha que começou a estudar flamenco por causa do pai e fundou a Fundação Cristina Heeren, que tem a principal escola de flamenco na Espanha. É uma mulher riquíssima, ainda é viva, mas não quis falar comigo. Ela e mãe tinham um relacionamento muito ruim. Desde pequena, a filha odiava a vida social que a mãe adorava. Ela não atrapalhou em nada as pesquisas, ajudou até com alguma coisa, mas não quis falar para o livro. Isso não fez falta porque ela, como virou uma celebridade na Espanha, já deu vários entrevistas e é bastante conhecida lá. E Aimée tinha uma irmã, Vera, que morreu antes dela, no Rio de Janeiro, por volta de 1986. A última vez que a Aimée esteve no Brasil foi justamente na morte da irmã dela.
Outra personagem interessante do livro é a Aparecida, que trabalhou para Aimée. Como ela lidava com essa aristocracia?
Aparecida, uma mulher do Rio de Janeiro, doméstica, morando em São Gonçalo e que trabalhava na casa de pessoas ricas, foi selecionada pelos parentes de Aimée para ir trabalhar com ela nos últimos sete anos de vida. Ela tinha trabalhado por 40 anos com uma família rica do Rio, com quem tinha um excelente relacionamento. Durante esses sete anos, Aparecida morava em palácios. Você pega o passaporte dela e vê que ela rodou o mundo, conhecendo princesas, sendo apresentada a toda essa gente.
Mas Aparecida é uma mulher profundamente sábia. É uma mulher que entende perfeitamente o que se passou na vida dela. Ela não tem rancores, gostava muito da Aimée. E conta histórias ótimas, tinha uma relação quase carinhosa com a Aimée e continua tendo com a filha dela, que foi quem a contratou. É uma figura absolutamente encantadora e tem muita clareza sobre essa vida: foi para lá para ganhar um dinheiro, pra criar bem seus filhos e fazer um pé de meia. Ela não se alterou, não mudou, continua a mesma pessoa agradabilíssima.
Você escreve no livro que Aimée teve um romance rápido com o diretor de cinema Orson Welles. Em ‘Cidadão Kane’, ele conta muito bem a história de um poderoso solitário que conquista tudo, mas no fundo está com saudade do trenó da infância. Aimée não parece ser isso. Parece alguém que soube desfrutar. O que você acha?
É difícil comparar os dois, porque ele era uma figura torturada, um artista e com uma alma bastante diferente da dela. A relação dos dois começa quando ele está filmando Hamlet, seu primeiro filme fora dos Estados Unidos, e está tentando conseguir dinheiro para finalizá-lo. Ele vai a uma festa em Veneza que juntava toda a burguesia europeia e ela está nessa festa. É a primeira vez que ela vai a um grande evento quando já está levando uma vida separada do marido. Eles paqueraram abertamente na festa, posaram no Palácio, tem várias fotos. Até que, no meio da noite, ele disse no ouvido dela: vamos dançar na praça? E eles saíram do baile, foram acabar em Paris, onde ficaram uma semana namorando. Ela achou que uma semana era um bom tempo, porque disse que ele era muito “chatinho”. Apesar de um sujeito sensacional, devia ser uma pessoa que só falava sobre si.
Aimée também era uma pessoa egocêntrica?
Ela era muito cuidadosa com isso. Certamente era. Mas era muito craque em convivência social. A filha dela reclamava, dizia que ela queria ser a dona das festas. Quem convivia com ela conta que todo mundo estava sempre sorrindo à sua volta. Ela era uma mulher especializada em viver bem. Quando ia encontrar pessoas que não conhecia, ela as estudava para ter uma conversa agradável. Aimée gostava de gente interessante.
Mas isso não quer dizer que ela era uma pessoa interesseira, que fazia isso só para ser agradável?
Essa é uma questão engraçada: ela nunca precisou de dinheiro, nunca quis chegar em outro lugar que não fosse onde já estava - só queria conservar aquele lugar. E ela era uma socialite, gostava de festa, ficava o tempo inteiro inventando, mesmo quando ela fica velha. Quando Buzz Aldrin, astronauta da Apollo 11, vai visitar Paris para receber um prêmio, ela viu aquela notícia e disse para uma amiga: “Que máximo, jantar com o homem que já esteve na lua”. Ela armou uma recepção em uma casa em Paris para ele. Muitos embaixadores brasileiros a usavam para organizar festas. Era uma anfitriã notável.
Quanto o fato de ela ser essa socialite com trânsito importante foi usado também pela diplomacia brasileira?
Um embaixador com quem falei e que deixa isso muito claro é Marcos Azambuja. Ele, que a conheceu bem, disse: ‘Eu a encarava como uma aliada’. Ela era aquela pessoa que sabia quem valia a pena encontrar e como fazer encontrar. E gostava dessa vida de socialite. Essas celebrações da aristocracia tinham essa mistura de ser também um ambiente de negócios. Ali se fazia política.
Depois de ir embora, como ela via o Brasil?
Ela sempre falou bem. [Depois que o caso com Getúlio Varga é descoberto], ela sai sabendo que teve que inventar outra vida. Mas jamais perdeu o contato. Marcos Azambuja acha que ela é daqueles raros personagens que explodem na Europa e não se desnacionalizam. Aimée sempre arrumou um jeito de se dizer brasileira.
A Bem-Amada: Aimée de Heeren, a última dama do Brasil
- Autor: Delmo Moreira
- Editora: Todavia (224 págs.; R$ 89,90; R$ 64,90 o e-book)
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