É um recurso comum e muitas vezes impreciso comparar quadrinhos “adultos” com a literatura ambiciosamente estética. No caso de Intrusos, a coleção de contos em quadrinhos do americano Adrian Tomine, as fronteiras (se existem) são ainda mais esfumaçadas porque o autor empreende uma ligação única entre palavras e imagens, para fazer uma exploração – carregada de ironia e tons de humor – sobre luto, ambição criativa, identidade e dinâmicas familiares. O que é mais importante aqui, palavras ou desenhos? Isso importa? O que torna essa coleção de histórias, em específico, tão definitivamente potente?
Elucubrações como essas, porém, interessam mais à crítica do que ao autor. Ilustrador de capas da New Yorker, Tomine, de 44 anos, começou na Califórnia e foi a série de quadrinhos Optic Nerve, publicada a partir de 1991, que chamou a atenção da editora canadense Drawn and Quarterly. A casa passou a editar as histórias em livros e com elas Tomine levou seu primeiro, de onze, Eisner Award, o Oscar das HQs. Intrusos também levou um, em 2016. O livro é publicado no Brasil pela Editora Nemo com tradução de Érico Assis.
“Eu costumava ter opiniões mais fortes sobre como os quadrinhos eram percebidos e o que era escrito sobre eles. Mas agora eu meio que sinto que esse é um mundo completamente separado do que faço. Se um jornalista quer expor meu trabalho para uma audiência maior comparando-o a outras coisas que não quadrinhos, não posso me ofender por isso”, diz Tomine em uma entrevista ao Estado.
No campo dos quadrinhos, entre suas influências, ele próprio cita Daniel Clowes (David Boring, um dos clássicos de Clowes, também foi lançado pela Nemo) e Chris Ware, autor de Jimmy Corrigan: O Menino Mais Esperto do Mundo, livro frequentemente citado entre melhores quadrinhos de todos os tempos. O próprio Ware ficou encantado com Intrusos. “Em seis histórias que variam em duração, abordagem visual e tom narrativo, Tomine sutilmente movimenta conceitos e abordagens específicas para suas tramas, equilibrando as qualidades básicas do desenho de simplificação facial e informação de contexto e cor para se encaixar no timbre particular de cada peça”, escreveu no The Guardian. Na literatura, seu trabalho lembra as reflexões claustrofóbicas de Raymond Carver sobre o ambiente familiar. Mas sua obra é particular em vários aspectos.
Em uma história, um homem tenta a sorte na peculiar arte da “Horstescultura”. Em outra, o autor conta uma história de separação familiar sem mostrar os personagens. Na do título, um pai desajeitado e cético acompanha as tentativas da filha em emendar uma carreira na comédia stand-up. Em comum, a ausência de saber como estar no mundo no século 21. O autor concedeu a entrevista por e-mail.
Por que você decidiu contar essas histórias em formato de contos? Qual é a diferença entre usar esse formato e outro mais longo, como em outro livro seu, ‘Shortcomings’?
Minha primeira filha tinha acabado de nascer quando eu comecei a trabalhar nas histórias de Intrusos, e ficou bem claro que pelos próximos anos meu tempo de trabalho seria esporádico e propenso a interrupções. Eu não achei que seria o tempo certo de embarcar num trabalho longo e continuado. Também sou apenas um fã de contos, e acho que de várias maneiras é o meu modo natural. E suponho que, num nível muito básico, eu estava apenas tentando fazer algo diferente do livro anterior, que foi Shortcomings (uma graphic novel).
A história do título tem uma mistura muito interessante com comédia stand-up. A comédia, nos EUA, tem uma longa tradição cultural e se mistura com as outras formas de arte. Pode comentar um pouco essa história em particular?
O ponto de partida desse conto foi apenas eu fazendo uma lista dos meus maiores medos e ansiedades naquele ponto particular da minha vida. E isso me levou para a ideia de um pai navegando a experiência de sua filha ao tentar algo tão extrovertido e arriscado como o stand-up. Quis me projetar no futuro de alguma maneira, e trabalhar duramente com as coisas em forma de ficção.
Qual é a sua relação com a comédia, no geral? Como ela afeta seu trabalho nos quadrinhos?
Eu sou a favor da comédia. Não saio para ir aos clubes ou algo assim, mas tendo a usar humor como um mecanismo de sobrevivência e gravito em direção a pessoas que veem humor nas agonias da vida cotidiana. Se alguém não vê o mundo pelas lentes do humor, mesmo que seja um humor muito obscuro, eu não consigo suportá-las, para falar a real. Em termos de afetar meu trabalho, penso que às vezes é muito óbvio e em outras, quase imperceptível. Há muita coisa nos meus quadrinhos divertidas para mim por razões privadas, ou apenas desenhadas para fazer alguém que eu conheço dar muita risada. Acho que toda a empreitada de fazer quadrinhos é um tipo de extensão vaga daquela visão de mundo de que falava antes: a de que você esteja se divertindo o bastante ao observar o mundo para tentar de alguma maneira capturá-lo no papel.
Raymond Carver é um nome que frequentemente aparece quando pessoas falam sobre o seu trabalho, especialmente neste livro. Você o considera uma influência no seu trabalho?
Eu na verdade aprendi sobre Raymond Carver depois que comecei a publicar meus primeiros quadrinhos, quando tinha uns 16 anos. Comecei a receber cartas de pessoas que diriam, ‘Oh, você deve ser um grande fã do Carver’. Assim eu fui à livraria e comecei a ler as coisas dele, e claro que amei. Mas não escrevi histórias curtas em quadrinhos numa tentativa de emular o trabalho dele. Agora, depois de todos esses anos, não estou relendo os livros de Carver regularmente, mas acho que sua influência é tão impregnada em muito da ficção contemporânea que agora provavelmente sou influenciado por escritores que foram influenciados por ele.
O que você acha desse tipo de comparação? Alguém poderia argumentar que sempre estão tentando comparar trabalhos “sérios” de quadrinhos com a literatura para estabelecer os primeiros como uma forma de arte válida. Você vê isso acontecendo?
Eu costumava ter opiniões mais fortes sobre como os quadrinhos eram percebidos e o que era escrito sobre eles. Sabe, eu ficaria chateado sobre o termo “graphic novel” e tentaria explicar por que ele é míope e impreciso. Mas agora eu meio que sinto que esse é um mundo completamente separado do que faço. Se um jornalista quer expor meu trabalho para uma audiência maior comparando-o a outras coisas que não quadrinhos, não posso me ofender por isso.
INTRUSOS
Autor: Adrian Tomine
Tradutor: Érico Assis
Editora: Nemo (128 p., R$ 54,90)
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.