Publicar de uma só vez a tradução dos romances da chamada Trilogia dos Gêmeos, de Ágota Kristóf, oferece ao leitor brasileiro uma oportunidade singular. A Rocco já os havia traduzido por aqui entre o final dos anos 1980 e meados dos 1990, seguindo relativamente de perto o intervalo dos lançamentos originais na França; mas há tempos estão fora de catálogo.
A nova tradução, assinada por Diego Grando e publicada pela Dublinense, além de renovar o acesso às obras, favorece em razão do lançamento simultâneo a fruição da múltipla teia de sentidos que irmana os romances. Sim, cada livro tem fios que agregam tensão e ambivalência aos próprios enredos. Quando lidos, porém, em série, eles se revelam partes de um novelo maior cujo fio mais denso é o da própria escrita.
A engrenagem metalinguística é sugerida já no título do primeiro romance: O Grande Caderno. Para escapar de bombardeios, dois gêmeos são deixados pela mãe na casa da avó materna. Nomeia-se pouco e genericamente. Sabe-se que há uma guerra em curso e, por ora, ela não arrasa a Cidade Pequena para onde os meninos, vindos da Cidade Grande, são levados.

Para não dizer que os personagens do núcleo central são designados apenas pelo grau de parentesco, os gêmeos são chamados de “filhos de uma cadela” pela avó, e esta, suspeita de ter envenenado o marido, é tratada de “Bruxa” pela comunidade. Quando se conhece a biografia de Ágota Kristóf, húngara exilada na Suíça após a malfadada revolução de 1956, não é difícil inferir do entrecho da trilogia muitas das feridas e cicatrizes da Segunda Guerra e da Ocupação Russa na Hungria, mas é preciso frisar que esse pano de fundo está em chave alegórica.
A hostilidade é a menor das agruras vividas pelos irmãos. Dinheiro e pertences enviados pela mãe são confiscados pela avó cruel e sovina, que os priva de cuidados básicos e os obriga trabalhar duro em troca de comida. Fora de casa, eles presenciam e sofrem a barbárie, então criam para si uma rígida série de exercícios para tolerar a brutalidade e enrijecer o espírito. O resultado é um quase completo entorpecimento moral, sensível e afetivo.
Esses anos – dos 9 aos 15 – na casa da avó são relatados em um único e longo texto manuscrito, revisado e intitulado por eles de Grande Caderno, daí a curiosa narração na primeira pessoa do plural e a escrita simples, direta e predominantemente declarativa do caderno e, por conseguinte, do romance. Há, inclusive, uma poética fundada na ideia de “redação verdadeira”, sem juízos, pretensão talvez explicada pelo enrijecimento humano a que se submeteram: “Temos que descrever aquilo que é, aquilo que nós vemos, aquilo que nós ouvimos, aquilo que nós fazemos”. Para sobreviver, julgam necessário enrijecer até mesmo o que de mais humano ainda resta, o amor fraterno, então decidem se separar.
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Traumática, a cisão é o ponto final do primeiro romance e o de partida do segundo, A Prova. Se não há “nós”, não há Grande Caderno e a perspectiva da narração é outra: no lugar da primeira do plural, a terceira. Os gêmeos agora são nomeados: Lucas e Claus, anagrama em nada gratuito. O enredo é centrado em Lucas, o irmão do lado de cá da fronteira, o irmão que ficou. Ele continua a escrever, mas desta vez o leitor não tem acesso a seus manuscritos, apenas aludidos vez ou outra. Sem Claus, Lucas pena para se reencontrar na rigidez cotidiana, tarefa ainda mais árdua em razão do aparato burocrático do Estado cuja desumanidade, em moldes kafkianos, aflige os cidadãos.
Sua rotina muda ao encontrar e acolher a jovem Yasmine e seu bebê Mathias, fruto de um incesto. Com ela, Lucas é frio, mas com o menino é muito afetuoso, obsessivo até, como reavivasse o amor pelo irmão e suprisse sua ausência. Portador de deficiência física, Mathias recebe de Lucas uma educação rigorosa para suportar e enfrentar o mundo, replicando em muito aquela dos gêmeos.
Outra duplicidade – e das mais relevantes – é a escrita, pela qual o garoto – tão prodígio quanto os gêmeos, diga-se – logo toma gosto. Obsessiva, mas em outro viés, é também a relação de Lucas com a bibliotecária aposentada em quem vê a mãe falecida. Das histórias secundárias de A Prova, chama atenção a do livreiro bêbado, angustiado por ainda não ter escrito um livro, mas disposto a largar tudo para fazê-lo. Diz ele: “Eu tenho certeza, Lucas, que todo ser humano nasceu para escrever um livro e não para outra coisa. Um livro genial ou um livro medíocre, pouco importa, mas aquele que não tiver escrito nada é um ser perdido, ele apenas passou pela terra sem deixar vestígios.”

Em A Terceira Mentira, último romance da trilogia, há duas partes, cada qual narrada por um dos irmãos. Mas ao contrário do que sugere a estrutura, o que esse livro opera – sobretudo quando se tem viva a leitura dos anteriores – é um imenso emaranhado de perspectivas, a começar pelos narradores: Lucas-Claus e Klaus. Quem é quem afinal? Quem narra? Quem é narrado? Há mesmo dois? Mais do que se encontrar, os irmãos se confundem no romance.
O que há de essencialmente revelador é um trauma familiar cujas circunstâncias e consequências podem ser identificadas com variações em O Grande Caderno e A Prova. Dito de outro modo, ele seria o drama fundador da miríade de histórias tensionadas, entre outros motivos narrativos recorrentes, pela dissolução abrupta do núcleo familiar, pela infância roubada, pela guerra, pela claudicância, pela crueldade, pelo incesto.
E, a julgar pelo título, não seria o derradeiro romance também uma variação desse trauma original? Não seria uma terceira versão fabulada? Perguntado por uma livreira que o visita na cadeia se o que escreve é verdade ou invenção, Lucas-Claus responde que tenta contar a própria história, mas a distorce, porque ela o “machuca demais”. E arremata: “Um livro, por mais triste que ele seja, não pode ser tão triste quanto uma vida”. Em face do inarrável, narrar. Narrar com o outro, narrar como um outro e, assim, narrar para suportar. Talvez seja esse o grande exercício da Trilogia.
Box Trilogia dos Gêmeos
- Autora: Ágota Kristóf
- Tradução: Diego Grando
- Editora: Dublinense (560 págs.; R$ 179,90)