Quando a editora Sudamericana convidou autores para escrever sobre um espaço público de sua preferência, o argentino Alan Pauls escolheu biblioteca. “Mas logo percebi que seria um tema nada animador e já estava desistindo quando um amigo sugeriu praia”, conta ele, em entrevista por Zoom ao Estadão, desde Berlim, onde mora. “Gostei da ideia, pois teria o desafio de injetar cultura em um lugar onde, aparentemente, não há traços de cultura.” O resultado é A Vida Descalço, que a Companhia das Letras acaba de lançar em nova edição - a primeira foi editada pela Cosac Naify, em 2013.
O livro foi originalmente publicado em 2006 e, apesar de passados quase 20 anos, Pauls não vê razão para modificar algo no texto. “As praias não mudaram muito - há, sim, menos praias selvagens, mas as características em geral são as mesmas”, diz. De fato, Pauls, considerado renovador de uma tradição literária graças à sua sintaxe envolvente, reflete sobre a praia e seus possíveis significados: social, cultural, ético, natural e estético.
Um livro curto (104 páginas), recheado de fotos em preto e branco, mas cujo texto acrescenta um olhar original sobre um espaço, a rigor, formado por poucos elementos, como areia e água salgada, e, nos melhores dias, banhado por intenso calor e brisa. A praia é, para a maioria dos povos, associada à forma mais perfeita de felicidade, da qual Pauls, hoje com 63 anos, também comunga: em A Vida Descalço, o lugar é palco para a apresentação de imagens ligadas à memória do escritor, especialmente sua infância, passada em Cabo Polonio, povoado uruguaio.
“Há 25 anos, quando comecei a frequentá-lo junto da minha família, praticamente não havia nenhuma marca da presença humana, pois era uma pequena vila de pescadores sem energia elétrica - portanto, sem cinema, TV, computadores, celulares. Era o mais próximo do que podemos chamar de praia virgem”, relembra Pauls, que embaralha os gêneros neste livro. “Eu diria que é um ensaio, a melhor forma de condensar ao máximo uma escrita. Mas também é autobiográfico, pois utilizo minhas lembranças em Cabo Polonio e também Villa Gesell, no litoral ao sul de Buenos Aires, onde passei férias de verão na infância por mais de 15 anos.”
“Nós, os que vamos à praia, vamos sempre mais ou menos atrás da mesma coisa: das marcas do que o mundo era antes que a mão do homem decidisse reescrevê-lo”, narra o argentino, observando que todos os corpos, na areia ou no mar, são democratizados pela nudez em massa. E sugere que nada é mais dissonante para a imaginação popular do que a ideia de um intelectual de maiô lutando contra raios de sol.
Mas é no ambiente praieiro que Pauls garante ter mais sonhos que em qualquer outro lugar, algo como dois ou três por noite, que são transcritos no papel no dia seguinte. “Não se trata de literatura, mas de observações que podem alimentar minha escrita futura”, garante ele que, no livro, relembra quando veio ao Rio, em julho de 1970, ao lado do pai e do irmão - caminhou pelas areias de Copacabana, entre extasiado pela deslumbrante beleza do lugar e amedrontado pelos ladrões que, segundo as agências de viagem portenhas, atuavam na região.
É lembrando da violência que, no ensaio autobiográfico, Pauls se lança no desafio de desmistificar que a praia é um elemento pouco literário - para isso, relembra que ali foi o local onde o personagem Meursault, de O Estrangeiro, de Albert Camus, mata um homem. Motivado, segundo o argentino, pelo calor insano, que embaralha os sentidos e permite que algo selvagem que habita seu interior se lance para fora. Uma narrativa visivelmente fascinante.
E, como já atuou como roteirista de cinema, Pauls traz muitas referências de filmes e diretores ao texto, uma vez que o cinema é, para ele, um arquivo de formas, histórias e narrações tão importantes quanto a literatura. “Há uma verdadeira articulação entre cinema e literatura no que escrevo - costumo rascunhar pensando em estruturas mais cinematográficas do que literárias. E a praia é como uma grande sala onde se projeta todo tipo de imagens e histórias audiovisuais”, afirma, dando destaque a um longa: Sob a Areia, dirigido em 2000 pelo francês François Ozon.
Na trama, uma professora (Charlotte Rampling) adormece na praia e, ao acordar, não encontra mais o marido, que foi tomar um banho no mar. Ninguém o viu, tampouco é encontrado seu corpo já morto. Isso leva a mulher a um processo de desintegração mental, porque não aceita o desaparecimento. “A praia é um espaço aberto, é praticamente impossível alguém se esconder lá, mas Ozon parece dizer que mais de um poderia desaparecer.”
No final de seu ensaio autobiográfico sobre a praia, Pauls relembra o dia em que, doente, não pôde brincar na areia. Revoltado por ficar trancado em casa, tentou contornar a ira lendo um livro e, pouco depois, descobriu-se maravilhado com aquela ponte para “outro mundo”.
“Ali me descobri leitor e a praia se tornou o local ideal também para a descoberta de outros lugares criados pela imaginação. Foi na praia que conheci Cortázar e me apaixonei pelos seus primeiros livros”, recorda ele, dizendo que a quantidade de obras que lê em três semanas em Cabo Polonio é a mesma que em Buenos Aires, só que em três ou quatro meses.
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