Tatiana Salem Levy estreou na literatura com o romance A Chave da Casa (2007). O livro indicava o surgimento de uma escritora talentosa, com senso da dinâmica do romance. Uma promessa animadora. Sete anos e um segundo livro, Dois Rios (2011) depois, a autora publica Paraíso (2014). Um romance bastante problemático. É possível reencontrar nele certas qualidades, a frase segura e sugestiva – como na passagem do banho turco, que garantia o crédito à autora na obra de estreia. Isso quase ocorre em Paraíso, no qual, entretanto, há excesso de lugares-comuns, na história de uma escritora pretensamente isolada no sítio de uma amiga onde começa a escrever seu romance longe do mundo, após uma noite de sexo ocasional e a suspeita de ter contraído o HIV. O lugar-comum aí é o romance sobre uma romancista que escreve um romance.
Lá, ela, coincidência previsível, encontra um artista plástico que também buscara o isolamento a fim de lidar com alguns enigmas da própria vida – no fundo, cara-metade da escritora Ana. Evidente, o mundo cruel, se parece longe, está na memória de cada um e os fantasmas surgem, insistem, etc. São reminiscências do horror particular e da história: escravidão, suplício e assassinato promovidos pela sinhá enciumada, de uma princesa negra por ter concebido um filho do patrão, depois vem a mãe da protagonista no Rio contemporâneo, vítima de estupro, o pai refugiado político, o padrasto que paquera a enteada, etc. A narradora torna-se o receptáculo do problema da opressão à mulher, enquanto o artista plástico fica perplexo ao descobrir no avô um judeu italiano que escondera a identidade primitiva em seu novo país. A violência presente explode quando a caseira surge esfaqueada, provavelmente pelo ex-marido, mas isso não está claro.
A opção é deixar em aberto, mas para que o recurso funcionasse seria preciso uma arquitetura rigorosa em sua dialética. Para que funcionem em conjunto as personagens teriam de ser desenvolvidas com a articulação bem orquestrada, ponto e contraponto. Quem sabe isso esteja ali em potencial, possivelmente nos segredos às vezes ridículos, que cada figura insiste em conservar como uma idolatrada relíquia do trauma e, sabe-se, pode levar a tragédias inexplicáveis quando vistas na superficialidade. Seria o grande tema, fator de unidade no diverso, que não se efetiva. Às vezes, o romance parece uma sequência de anotações unidas apenas pelo discurso arbitrário e inconvincente da narradora, dona de uma fala banal e cansativa, mais para o senso comum (mortal) com expressões desgastadas – não vale a pena citar aqui. Se o leitor duvida, claro, pode e deve conferir com a própria leitura, mas vai uma dica: o sítio Paraíso, obviamente, revela-se o inferno. Talvez um bom trabalho de editing contribuísse para reparar certos problemas, talvez, porque há conflito entre a narrativa linear e o fragmento, formando um nó cujo desenlace poderia redundar na desmontagem do projeto.
No final, realiza-se o amor porque o artista plástico faz o que o parceiro ocasional anterior não fez, ou seja, tira uma camisinha esperta do bolso. Lembra marketing social de novela das 8 ou 10 – nada contra, desde que no horário e veículo adequados. Então o amor e a esperança se insinuam, além do sexo. Mas assuntos relevantes não conferem, digamos, peso de literatura a um livro. Temas graves como aqueles pinçados acima supõem tratamento eficiente em termos de linguagem, carpintaria, fabulação; o mesmo vale para motivos fúteis que se tornam reveladores em tantas ficções. O tom pode ser leve, neutro, pouco importa. Sem contar que boas intenções, quando não desmontadas em sua ideologia, apenas corroem a expressão – e este é um traço que já se insinuava no primeiro romance.
MOACIR AMÂNCIO É PROFESSOR DE LITERATURA HEBRAICA NA USP E AUTOR DE ATA (REUNIÃO DE POEMAS, RECORD), E YONA E O ANDRÓGINO – NOTAS DE POESIA E CABALA (NANKIN/EDUSP)
PARAÍSO
Autora: Tatiana Salem Levy
Editora: Foz (176 págs., R$ 37,90)
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