A notícia é boa para a cena dos quadrinhos no Brasil: André Toral lançou uma nova graphic novel (a primeira desde 2011) e ele continua misturando o prazer da leitura com sua refinada pesquisa histórica. Holandeses conta a história de uma dupla de irmãos nascida em Amsterdã de pais portugueses e judeus. Empregados do pintor Rembrandt, eles desembarcam no Recife em 1635, em meio à ocupação holandesa no nordeste, atrás de dinheiro e salvação.
Como o autor ressalta, o livro – uma história de ficção incrustada de realidade histórica – atravessa quatro momentos definidores: a crença judaica de serem os índios descendentes de judeus, a vida no ateliê de Rembrandt em Amsterdã, o comércio de escravos no Atlântico Sul e a presença dos judeus-portugueses na Holanda e no Brasil.
O livro será lançado neste sábado, 6, na Livraria da Vila (Rua Fradique Coutinho, 915, São Paulo).
Sobre o livro e sua produção, Toral – que é doutor em História pela USP e professor de Estética e História da Arte na Faap, além de autor de Adeus, Chamigo Brasileiro (1999) e Os Brasileiros (2009), entre outros – respondeu a questões do Estado.
O título do livro faz um contraste com Os Brasileiros, mas parece que no fim das contas Holandeses é também sobre os brasileiros, estou correto?
O título do livro é Holandeses, mas quem aparece lá é um judeu-português, Esaú de Azevedo. Muitas vezes, aqueles que são ditos “holandeses” no período da invasão são judeus-portugueses que viviam em Amsterdã. Os dois livros dizem respeito a histórias que, sem querer ser pretensioso, abordam o processo de formação da nacionalidade brasileira. Gosto de falar de sujeitos históricos, que a história dos vencedores empurrou para a margem e tirou a voz: escravos, índios, soldados, vendedoras de bolo na rua, motoboys, braçais, chapas, etc.
Que traços, principalmente dos índios retratados no livro, podemos dizer que chegam aos brasileiros contemporâneos?
Quando a gente vê os desenhos de Debret do século 19, ou as pinturas de Eckhout no 17, a gente sabe que muita coisa mudou, mas entende a natureza e as pessoas como familiares, parte de um universo conhecido pela experiência ou pela imaginação. É o mesmo que acontece quando nos encontramos com o Brasil de Machado de Assis: parece que estamos no presente, em meio àquilo que nos liga, hoje e ontem, a uma cultura brasileira. Por meio dos índios de ontem, sim, podemos entender suas demandas no presente. Os extintos índios tarairiús que aparecem no meu álbum se parecem muito com o grupo indígena kraho do presente. E por meio da escravidão retratada no livro, entendemos as diferenças sociais no Brasil de hoje. O Brasil de hoje é a herança da escravidão.
Você retrata aqui um momento de uma sociedade muito dividida (judeus, brasilianos, holandeses, mamelucos, negros, reinóis, mulatos e mazombos). Hoje, também vivemos em uma sociedade dividida, mas na aparência, pelo menos, essa divisão é mais binária, correto? É o destino da sociedade brasileira viver dividida?
É uma sociedade dividida, sim. É uma sociedade imensamente rica e na qual a riqueza é muito mal dividida. Essa iniquidade é a base da violência nas periferias das nossas cidades e nos presídios. O entendimento de uma sociedade assim tão desigual começa na história colonial. Por séculos o setor mais dinâmico da nossa economia, exportação de produtos primários como açúcar e café, tinha seu modo de produção baseado na intensa utilização de mão de obra escrava. É imprescindível que a escravidão seja discutida nas escolas hoje em profundidade. Para as pessoas se compreenderem e compreenderem a história.
A preocupação em falar da sociedade brasileira é uma tendência contemporânea dos quadrinhos? Por que, na sua opinião?
Temos uma série enorme de excelentes desenhistas com uma preocupação bastante próxima à minha, ou seja, falar da sociedade brasileira. Gostaria de lembrar Marcelo D’Salete, autor de excelentes HQ sobre escravidão no período colonial; Marcelo Quintanilha, que dispensa apresentações e trabalha com personagens suburbanos numa realidade brasileira asfixiante; e Sirlene Barbosa e João Pinheiro na excelente adaptação do livro de Carolina de Jesus. Agora, não adianta nada contar uma bela história se a HQ é chata. A novidade dessas histórias, em que, sem modéstia alguma, me incluo, é sua qualidade gráfica.
Como tem sido seu método?
Trabalho com lápis. Faço numa folha tamanho sulfite normal. Amplio para A2 numa xerox colorida em PB. Esse é meu truque. Faço a arte final (quadrinhos, balões, recordatórios) nessa folha na qual agora o traço do lápis se transformou no preto. Não uso mais nanquim. Não uso nada de computador, primitivo que sou. Reduzo de novo e imprimo num acetato em PB. Aí, é como animação. Ponho a cor na mesa de luz com aquarela, obedecendo aos limites do acetato. Você trabalha sobre o papel de aquarela, com a acetato debaixo, com a luz ligada no seu olho o tempo todo. Esse processo tem a vantagem de reter o gesto do lápis e a soltura da aquarela. Fica lindo, mas é demorado. Ninguém faz assim, hoje em dia. Não sei se sou muito inteligente.
HOLANDESES
Autor: André Toral
Ed.: Veneta (96 págs.,R$ 59,90)
Lançamento: Sábado, 6/5, às 15h, na Livraria da Vila (R. Fradique Coutinho, 915)
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