ENVIADO ESPECIAL / PARATY - Foi um dos momentos de grande comoção que vão entrar para a história da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip: quando a escritora francesa Annie Ernaux terminou sua última fala na mesa deste sábado, 26, à tarde, a plateia que lotava o Auditório da Matriz, na cidade fluminense, explodiu em um aplauso emocionado e de pé, com diversas pessoas não contendo o choro. Agradecida, a autora abriu seu maior sorriso e, de braços abertos, proferiu um “obrigado” verdadeiro.
Prêmio Nobel de Literatura deste ano, Annie, autora de uma obra essencialmente confessional (o que pode explicar a paixão despertada por sua escrita, especialmente entre as mulheres), havia encerrado sua participação justamente com a lembrança da má recepção que sua vitória provocou em parte da sociedade francesa, mesmo sendo ela a primeira escritora daquele país a receber a honraria. “A extrema direita e os meios mais conservadores não aceitaram que uma mulher que escreve de uma forma segundo eles violenta não era legalmente apta a receber o prêmio. Mas sou agora a primeira francesa a conquistar o Nobel com uma escrita que pode ser uma fonte de liberdade.”
A declaração soou com um tom de vitória e redenção depois de parte de sua história ter sido comentada durante a mesa, que contou ainda com a escritora brasileira Veronica Stigger e a mediação de Rita Palmeira. Aos 82 anos, Annie já narrou a delicada situação de ter feito um aborto ilegal em 1963 quando era uma estudante de 23 anos (em O Acontecimento) e a relação vivida com um homem trinta anos mais novo que ela (no recente O Jovem). “A recriminação que ela recebeu por momentos como esse reflete a grave situação da mulher, que não pode ter controle de seu próprio corpo e de seu destino”, observou Veronica.
De fato, foram momentos de afirmação. “Sobre a história do aborto, foi meu desejo de querer ter uma vida com livre escolha como têm os homens, ou seja, ter o poder de escolha. E, sobre O Jovem, eu quis mostrar a relação homem/mulher em que promovi a imersão do rapaz em uma nova cultura, uma vez que ele veio de um meio mais pobre.”
Annie Ernaux é considerada uma pioneira no estilo da autoficção, ou seja, seus livros trazem narrativas autobiográficas ao mesmo tempo em que refletem sobre o contexto social em que foram vividas.
É o que marca também o documentário Os Anos do Super 8, que foi exibido na Mostra de Cinema de São Paulo, no mês passado, e também no cinema de Paraty, na quinta-feira, 24. São cenas familiares rodadas entre os anos 1972 e 1981 e apresentadas com uma narração feita pela própria Annie, a partir de um texto escrito por ela. “As imagens trazem momentos rotineiros mas, na verdade, foi um período marcado por uma lenta separação de meu marido Philippe”, conta a autora que, secretamente, iniciou a escrita de um livro. “Ali, revelava cenas fortes sobre meu marido e também sobre minha mãe, que morava conosco na época. Eu me sentia livre para me expressar pois escrevia em segredo. Foi o rompimento da vida que levava e me preparava para uma nova.”
Tal resiliência foi recebida com entusiasmo pela plateia em Paraty, que se emocionou quando Annie garantiu não se arrepender de ter feito tais revelações. “Escrita, a vergonha não é mais a mesma que foi vivida.” O público se comoveu da mesma forma que as pessoas que assistiram à palestra de Adélia Prado (na Flip de 2006) ou na do português António Lobo Antunes (em 2009). Raros momentos em que a literatura transcendeu a vida.
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