Quase 5 anos após sua morte, Anthony Bourdain (1956-2018) continua a atrair interesse. Filmes e livros sobre o ex-chefe de cozinha que virou escritor e apresentador de sucesso volta e meia pipocam por aí. A maioria tenta explicar por que o cara que tinha o que parecia ser o emprego dos sonhos se matou em um hotel na França no auge da fama.
Um pouco com essa premissa, mas a partir de um olhar bem intimista, foi lançado aqui no Brasil o livro Em Maus Lençóis: Mundo Afora e nos Bastidores com Anthony Bourdain, de Tom Vitale. O autor foi produtor e diretor dos programas de Bourdain por 16 anos, primeiro no Travel Channel e depois na CNN. Com Tony, como ele chama o apresentador, ganhou um punhado de Emmys e muita história para contar.
O livro começa com o suicídio de Bourdain, que chocou meio mundo, incluindo - e principalmente - a sua equipe. Como outros antes dele, Vitale busca na memória possíveis pistas ao longo dos anos para esse desfecho e reflete sobre todas as vezes em que o apresentador falou sobre morte - segundo ele, era um assunto recorrente.
Vitale resolve até mesmo ir para Roma se encontrar com Asia Argento, a atriz italiana que namorava Bourdain quando ele morreu e que virou uma espécie de bode expiatório da história, em busca de respostas.
Também faz um relato sincero sobre a própria vida, que girava ao redor do programa e, por consequência, de Bourdain, motivo de conflito interno constante. E mostra como, aos 30 e poucos anos, sem muitos amigos nem um relacionamento estável, acumulava milhas aéreas e estresse seguindo o ex-chef pelo mundo.
E aí começam as histórias deliciosas. Como os inúmeros perrengues para filmar no Congo, onde Bourdain sonhava encarnar o coronel Kurtz de Joseph Conrad, imortalizado por Marlon Brando em Apocalypse Now. Aqui há a hilária cena em que o apresentador resolve fazer coq au vin em um barco navegando pelo perigoso Rio Congo, com energia elétrica intermitente, forrado de mosquitos, uma equipe em pânico e um Bourdain à beira de um ataque de nervos.
Outro momento que arranca gargalhadas é quando Vitale tenta pregar uma peça no amigo-chefe e contrata um mímico para segui-lo em Paris - Bourdain odiava mímicos e palhaços. Ou quando uma equipe doidona acha que descobriu um esquema mafioso na Jamaica. Ou ainda quando a dupla pega carona com um ensandecido Bill Murray ao volante pelas ruas de Nova York.
Boa parte do livro se concentra nas inúmeras dificuldades e nos imprevistos enfrentados durante as viagens, como um raro tornado no Irã ou a ameaça de guerra civil na Líbia pós-Kaddafi. O autor detalha momentos em que teve certeza de que morreria, enquanto Bourdain simplesmente se recostava e dormia tranquilamente, alheio ao caos e aos perigos ao redor. Vitale, aliás, conta que o apresentador, ao contrário de praticamente todo o resto do mundo, adorava uma turbulência, porque deixava o voo menos monótono!
O autor traça o retrato de um Bourdain imprevisível - arrisco dizer que, dependendo do episódio, era possível farejar o humor do ex-chef do outro lado da telinha e perceber se ele estava ou não a fim de filmar ali. Tony, segundo seu ex-diretor, poderia ser sádico e generoso na mesma medida. O livro, aliás, mostra um Bourdain um pouco menos “cool” do que suas roupas despojadas e seus inseparáveis óculos escuros poderiam sugerir. De acordo com Tom Vitale, o ex-chef também ficava ansioso diante de um episódio importante, invariavelmente demonstrava pouca empatia com a equipe e era um perfeccionista de carteirinha, além de arrogante e impaciente.
Adorava, é verdade, os lugares mais autênticos, com mesas simples e cadeiras de plástico - quem não se lembra do emblemático episódio com Obama no Vietnã? -, mas se irritava com facilidade e tinha seus ataques e caprichos.
Vitale conta por exemplo que, provavelmente para impressionar Asia Argento, Bourdain quis filmar com linguagem de cinema em Roma, o que demandou câmeras enormes, “do tamanho de um estúdio”, e custos exorbitantes. Ah, e o apresentador famoso por comer coisas como sopa de sangue e ânus de javali não era imune a problemas gastrointestinais. O autor relembra, talvez com mais detalhes do que deveria, alguns sufocos da equipe e do apresentador com refeições que não ocorreram exatamente como o planejado.
Infelizmente, o livro não fala de nenhuma viagem de Bourdain ao Brasil - e muito pouco sobre a América Latina em geral. Há, no entanto, fotos do diretor e do apresentador juntos na Bahia e em Ipanema, no Rio. O caderno de fotos recheado de lugares paradisíacos, aliás, deixa um gostinho amargo na boca. Afinal, quase todo mundo queria ser Anthony Bourdain - menos ele, provavelmente.
Em Maus Lençóis: Mundo Afora e nos Bastidores com Anthony Bourdain. Editora Tordesilhas, 328 páginas, R$ 85 (impresso), R$ 59,50 (e-book)
Caso tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada, como o CVV e os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) de sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia pelo telefone 188.
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