A celebração do centenário de Antonio Candido (24 de julho), grande intelectual falecido no ano passado, deflagrou muitos eventos. Entre congressos e simpósios, conferências, livros, números especiais de revistas, suplementos de jornais, destaca-se uma exposição no Itaú Cultural, à Av. Paulista, intitulada: Ocupação Antonio Candido – O Direito à Literatura. Alude a um de seus mais importantes ensaios, aquele que advoga em favor da extensão do direito à beleza, às artes e à literatura a todos os seres humanos. Não é justo, argumenta ele, que seja privilégio de poucos.
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Encontra-se ali, e pela primeira vez, uma amostra de seu acervo pessoal de documentos, fotografias, cadernos de anotação, esquemas de aula, manuscritos de trabalhos com emendas, recortes, cartas, etc. Fala-se em 45 mil itens textuais, entre os quais 90 cadernos de anotações, ou 126 se incluirmos as cadernetas. E mais 5 mil fotos e 800 discos e fitas cassete. Tendo como cocuradora a neta Laura Escorel, o acervo foi transferido para o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) sob o patrocínio do Itaú Cultural, para receber tratamento técnico que o habilite a ser aberto à consulta.
Os demais eventos se disseminam pelos quatro cantos da cidade: na Fapesp e no Sesc; na Escola Nacional Florestan Fernandes do MST (que batizou com seu nome a biblioteca); na Bienal do Livro; na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, alma mater do professor, cujo prédio de Letras recebeu igualmente seu nome. No conjunto, as falas de antigos alunos, admiradores e estudiosos examinarão as múltiplas vertentes em que se notabilizou: crítica literária, investigações sociológicas, militância política, entrevistas sobre a atualidade, livros que escreveu, ou ainda o mestre e orientador de teses; e assim por diante. Não só o grande intelectual mas o ser humano afável e de cortesia impecável será focalizado em suas preferências pessoais, seus laços afetivos e seus hobbies.
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Desde os primórdios, Candido procuraria atingir público mais amplo ao tornar-se “crítico de rodapé”, escrevendo semanalmente resenhas de livros novos (e às vezes menos novos), mas também desenvolvendo temas e tratando de autores estrangeiros. Nessa especialidade, nos anos 40 estrearia na Folha da Manhã, passando depois para o Diário de S. Paulo. Mais tarde, seria autor do projeto do legendário Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo.
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A militância política começaria já nos tempos de estudante, quando integrou a oposição à ditadura Vargas, para logo depois tornar-se cofundador da Esquerda Democrática, embrião do Partido Socialista. Neste, Antonio Candido seria por muitos anos diretor da Folha Socialista.
Enquanto isso, ia-se aos poucos afeiçoando uma personalidade intelectual e crítica, de perfil cada vez mais marcante, com voz ouvida e respeitada. Após os primeiros livros de crítica literária, a que se somaram as teses protocolares, seria a vez do monumental Formação da Literatura Brasileira (1959). No campo da cultura, poderia sem favor ser alinhado aos tratados que no século 20 assentaram os fundamentos de nossa compreensão do País: Casa Grande & Senzala, Raízes do Brasil, Formação do Brasil Contemporâneo.
É nesse livro que Antonio Candido fixa três diretrizes centrais. Primeiro, a literatura brasileira nasce da adaptação de modelos europeus, sobretudo portugueses, para atingir maioridade e autonomia. Segundo, esse processo expressa o desejo dos brasileiros de possuírem uma literatura própria, que foi esforçadamente construída passo a passo. Terceiro, as relações entre o literário e o extraliterário importam na medida em que o externo se interioriza e se torna elemento de construção da obra.
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Logo depois criaria o Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP, que depois o País inteiro copiaria, às dezenas senão às centenas. Ali desenvolveria seu trabalho docente mais importante, dando cursos e orientando teses, preparando discípulos que depois retransmitiriam seus ensinamentos.
Cidadão consciente, sua folha de serviços é admirável, e não se restringe nem ao literário nem ao acadêmico. Foi presidente da Cinemateca, em duas gestões. Foi membro do comitê editorial da revista Argumento, fechada pela ditadura. Integrou a Comissão de Justiça e Paz, criada por D. Paulo Evaristo Arns. Foi cofundador do Partido dos Trabalhadores e presidente da editora da Fundação Perseu Abramo. O rol é interminável.
Seu escritor predileto era Proust, de quem se dizia “fanático” e a quem dedicava a mais recheada das estantes de sua biblioteca. Melômano, em matéria de música tinha um fraco pela ópera e pela moda caipira. Infenso a agremiações mas fiel a suas origens mineiras, a única de que aceitou participar foi a Academia Poços-Caldense de Letras. Devendo escolher o patrono da Cadeira 21, indicou sua professora de ginásio D. Maria Ovídia Junqueira, que lhe revelara as belezas da Bíblia e de Shakespeare, a que se apegaria para sempre. Num tal preito de gratidão figura em alto-relevo o sinete do mestre.
*WALNICE NOGUEIRA GALVÃO É PROFESSORA EMÉRITA DA FFLCH-USP
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