Em 1975, Bruce Albert esteve pela primeira com os Yanomami do rio Catrimani, a oeste de Roraima. Nessa temporada, seus anfitriões costumavam falar de uma intrigante mulher branca que estivera no mesmo território um ano antes: a suíça Claudia Andujar, fotógrafa emblemática dos povos daquela região.
O primeiro contato entre Albert e Andujar se deu por uma longa carta em 1977, na qual ele sugeria a organização de um programa emergencial de saúde na região, devido a rumores de uma epidemia de sarampo que ameaçava os grupos isolados que visitara havia dois anos. Andujar respondeu confirmando a propagação da doença entre os habitantes dos afluentes vizinhos do rio Catrimani, onde estivera outra vez meses antes.
O encontro entre os Yanomami, Albert e Andujar, narrado num dos ensaios de O Espírito da Floresta, publicado pela Companhia das Letras, deu início a uma colaboração humanitária – e, mais tarde, artística – em prol dos povos yanomami. O resultado foi a formalização de uma luta que obteve conquistas importantes, como a criação da ONG Comissão Pró-Yanomami, em 1978, a legalização da Terra Indígena Yanomami, em 1992, e a fundação da Associação Hutukara, em 2004.
Quase cinquenta anos depois, o território yanomami continua ameaçado pelo garimpo de ouro e cassiterita, estimulado na região pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Acentuada nos últimos anos, a invasão de milhares de garimpeiros ilegais tem submetido a população yanomami a problemas sanitários, violência e exploração sexual, insegurança alimentar e degradação social.
“Desfazer juridicamente a Terra Yanomami é muito complicado, então a solução do governo Bolsonaro foi deixar todo mundo morrer lá dentro – uma tentativa de genocídio por omissão voluntária”, afirma Albert. O território é considerado pela comunidade científica uma região prioritária em matéria de proteção da biodiversidade.
Na sua parcela de ensaios que compõem O Espírito da Floresta, o antropólogo dá a conhecer sua vivência com xamãs e artistas indígenas, como Taniki e Joseca, e convida o leitor para uma reflexão sobre arte, ecologia e a cosmovisão yanomami. São relevadas a potência espiritual dos povos da floresta e sua relação com a arte e os artistas que os representaram nas últimas décadas.
A outra parcela é de autoria do xamã e líder indígena Davi Kopenawa, figura célebre na luta pela defesa do povo e do território yanomami. Amigos desde a primeira viagem de Albert à Amazônia brasileira, ambos são voz ativa e referência para a formação do pensamento ecológico contemporâneo, muito pautado hoje na cosmologia indígena, sobretudo após a publicação de A Queda do Céu. Lançado primeiro na França, em 2010, e depois no Brasil, em 2015, o livro foi fruto da longa e estreita parceria entre os autores e se tornou um marco para a literatura brasileira do século 21.
A pré-venda de O Espírito da Floresta, entre janeiro e fevereiro deste ano, arrecadou R$ 90 mil. O valor foi doado para a Associação Hutukara, presidida por Kopenawa, que atua em defesa dos Yanomami. A obra chega às livrarias num momento crítico para esse povo, para a floresta amazônica e para o planeta.
Escritos originalmente para exposições da Fundação Cartier em Paris, os ensaios resultam da colaboração entre o instituto e os Yanomami nos últimos 20 anos, que proporcionou o intercâmbio e o diálogo entre xamãs e artistas indígenas e não indígenas.
“Os capítulos do livro são momentos do diálogo entre esses dois mundos”, explica Albert. “Do lado dos artistas brancos e de uma instituição de arte, abriu-se o espaço da arte contemporânea para artistas indígenas, o que não era muito habitual no início dos anos 2000. Do lado dos Yanomami, foram confrontados com o que os brancos chamam de arte contemporânea. Era uma novidade para eles aprender conversando com artistas não indígenas e vendo suas obras.”
A arte indígena, restrita até então a museus etnográficos ou exposições indigenistas de cunho militante, ficava de fora da cena da arte contemporânea. Segundo Albert, essa colaboração artística inaugurou uma nova trilha para a compreensão da riqueza da cultura xamânica. “Arte contemporânea também se faz na maloca dos Yanomami. No mundo inteiro há artistas indígenas tão contemporâneos quanto qualquer outro. Não há razão para que sejam fixados no gueto do museu etnográfico.”
No decorrer da leitura, O Espírito da Floresta traz à tona a capacidade da arte – indígena e não indígena – e dos xamãs yanomami de pensar o mundo através de imagens. “O elo de comunicação entre artistas e xamãs é o que justifica esse diálogo. É uma experiência de mão dupla, uma aventura inédita ao redor da arte”, pondera.
Essa colaboração com a “gente de longe”, como Kopenawa se refere aos visitantes na obra, sem paternalismo nem exotismo, é interpretada de maneira positiva pelo xamã no ensaio “Gente de perto, gente de longe”. “Na volta, falarão de nós para as pessoas de suas terras. Contarão o que viram e ouviram na floresta. Mostrarão nossas imagens e farão ouvir nossas vozes. Muitos deles, por sua vez, nos compreenderão. Se for assim, vou ficar feliz. Será uma coisa bonita e direita”, escreve Kopenawa.
Na casa coletiva Watoriki (ou Montanha do Vento), onde conviveram com artistas não indígenas, os Yanomami se apropriaram do conceito de arte contemporânea enquanto um caminho para a compreensão do interesse universal de sua produção. “A arte contemporânea yanomami, e indígena em geral, tem esse pano de fundo político, com estética e metafísica próprias, e os artistas yanomami querem transmitir a riqueza do que constitui sua cultura para defender seu território e sua existência.”
A interrogação sobre o modo de perceber as imagens e os sons da floresta, que percorre todo o livro, leva o leitor a observar seu próprio pensamento com uma distância crítica e possibilita novas formas de compreensão da relação entre os seres. “Vivemos desde a Antiguidade sustentados por uma ideia de hierarquização dos seres vivos – um supremacismo humano da nossa ontologia e da nossa metafísica desde as raízes da cultura ocidental. Essa hierarquização foi transposta para a relação entre os povos: os ‘selvagens’ abaixo, os ‘bárbaros’ no meio e os ‘civilizados’ – de novo, os brancos – no topo”, diz Albert.
Essa hierarquização está nas raízes da destruição que o mundo ocidental infligiu aos povos e aos seres vivos, o que se compreende hoje como a origem de um ecocídio irrefreável e um colonialismo genocida generalizado. “Se não voltarmos a essas raízes e não desconstruirmos essa hierarquização, vamos continuar na mesma direção catastrófica. Esta é a mensagem dos Yanomami: o mundo dos seres vivos é um pluriverso que tem que incluir humanos e não humanos em pé de igualdade, com seus conflitos e negociações, mas que coabitam de maneira igual a terra-floresta, entidade que contempla isso tudo.”
Para Albert, a noção estabelecida de natureza não é uma parte da solução, mas do problema. “A natureza é o produto mais nocivo dessa hierarquização, é entendida como tudo aquilo que não é humano. Se continuamos pensando o universo dividido com, de um lado, os humanos e, de outro, a natureza, vamos continuar com a mesma atitude de destruição.”
Também Kopenawa reforça essa posição em O rastro dos brancos. “Todos começaram a falar de repente em ‘mudança climática’! Nós, xamãs, escutamos essas palavras dos brancos. Mas não gostamos delas. O que vocês nomeiam assim não vem do nosso rastro na terra! Nós, habitantes da floresta, não a maltratamos. Não a desmatamos sem medida. Toda essa devastação é pegada dos brancos, o traço deles no chão da terra”, afirma.
Em relação a perspectivas para o futuro, Albert não é muito otimista e afirma que estamos “à beira do abismo”. “Espero que a gente acorde e evite o pior. Para isso, confio nas novas gerações, que são mais sensíveis à questão ambiental.” Soma-se a isso a luta e a arte, é claro, também de uma nova geração yanomami, “preparada e consciente”, como define, que leva adiante os saberes dos povos da floresta.
Ele trabalha atualmente no registro da mitologia yanomami com a qual teve contato ainda no final dos anos 1970. “Ao desdobrar esses mitos, além do conhecimento sobre os animais e as plantas, temos toda uma reflexão sobre vida, morte, organização social e a relação com outros seres”, relata.
Hoje com 71 anos, Albert credita seu trabalho às pessoas yanomami com quem mantém um laço desde a sua chegada à Amazônia. “Os Yanomami me salvaram a pele e a cabeça. Me engajar na luta deles é o mínimo da retribuição que eu podia dar por terem me ensinado tanta coisa”, diz. “A amizade e a luta com os Yanomami têm que continuar. Essa luta deu sentido à minha vida, e não consigo me imaginar sem ela.”
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