‘Às vezes, penso que Kafka é um autor do século 21’, diz autor de trilogia sobre escritor checo

Alemão Reiner Stach passou 10 anos recolhendo dados para trilogia sobre Kafka que sai até 2024; em ‘Kafka: Os Anos Decisivos’, ele reavalia o olhar do escritor checo sobre si mesmo e seu tempo

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Foto do author Ubiratan Brasil
Atualização:

Entre 1910 e 1915, Franz Kafka trabalhou como funcionário público, mas o que tornou notável aquele período foi a produção do autor checo: A Metamorfose, O Processo e O Veredicto foram escritos em um curto período e apresentaram pontos que determinariam seu caminho: o encontro com o judaísmo religioso, os primeiros passos na vida pública, a catástrofe da eclosão da guerra e, acima de tudo, a tortuosa relação amorosa com Felice Bauer. Anos de intensidade sem precedentes: o centro da existência de Kafka (1883-1924).

É justamente tal fase que marca Kafka: Os Anos Decisivos (Todavia), segundo volume de uma detalhada trilogia biográfica escrita pelo alemão Reiner Stach, que passou mais de uma década trabalhando com milhares de páginas de diários, cartas e fragmentos literários, muitos nunca antes disponíveis - os outros volumes serão publicados em 2023 e 2024. Além do rigor histórico, o resultado é uma narrativa absorvente, cujas descrições cinematográficas permitem vivenciar todas as situações que marcaram o escritor, cuja obra sobreviveu após sua morte por causa da negativa de seu grande amigo, Max Brod, de destruir os originais, como Kafka queria. Stach respondeu, por e-mail, às seguintes questões.

Três fotos do escritor Franz Kafka durante seu tempo de estudante universitário, entre 1901 e 1908.  Foto: Reprodução

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Como você entende o fato de ele tentar transformar sua própria vida em uma narrativa consistente?

De fato, essa é uma característica particularmente marcante de Kafka: ele buscava transformar sua trajetória em algo consistente, com sucessos e fracassos. Essa narrativa foi tão pronunciada que quase se pode falar de um mito privado, para quem todo ser humano tem um núcleo indestrutível e que seu destino pode ser explicado a partir desse núcleo. Ele rejeitou a ideia de que uma vida também pode ser guiada por certos caminhos por coincidência. Um exemplo disso é sua estranha reação ao surto de tuberculose. Enquanto os amigos, assustados, davam conselhos com medidas médicas, Kafka pensava nessa doença como consequência de seu modo de vida anterior. Ele não acreditava em coincidências, mas que as constantes crises mentais haviam “atraído” ou mesmo possibilitado a doença. Não estava completamente errado, porque sabemos hoje que o estresse psicológico pode de fato enfraquecer o sistema imunológico.

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O que diria de “kafkiano”?

Foi a palavra da moda por algumas décadas, usada por certas pessoas para demonstrar sofisticação. “Kafkiano” é uma combinação de “absurdo” com “estranho”, uma atmosfera frequentemente encontrada em sonhos. Hoje, você ouve o termo com menos frequência, e eu não o uso porque representa apenas um aspecto de Kafka. Por exemplo, há também um tom de comédia muito característico nos textos de Kafka que pode chegar até a palhaçada. Para reconhecer isso, não é preciso saber muito sobre a vida de Kafka; o efeito dos textos é muito forte mesmo sem conhecimento biográfico. Mas há, é claro, uma curiosidade legítima sobre como esses textos magistrais e complexos são criados.

Kafka trata de dúvida, medo de compromisso, pânico por perder a vida - é isso que o torna atual?

É sobretudo a linguagem simples e pura que faz os textos de Kafka parecerem tão “novos”. Cada frase, tomada isoladamente, é completamente clara, não há ornamentos estilísticos nem adjetivos supérfluos, certamente nenhuma palavra da moda de seu tempo. Mas a dúvida que você menciona é típica das sociedades de massa modernas. Hoje, o indivíduo se sente intercambiável, sua vida é super-regulada, é determinada por leis complicadas, por “constrangimentos”. Além disso, no século 21 há uma vigilância crescente, uma perda da intimidade. O burocrata Kafka não poderia, é claro, ter previsto a extensão da vigilância hoje, mas ele entendeu que esse é um perigo inevitavelmente associado a qualquer forma de burocracia e poder. Acrescente a isso a inundação de uma infinidade de mídias - isso também nos ajuda a entender o medo de Kafka de perder a vida real. Às vezes, penso que é um autor do século 21.

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Capa do livro 'Kafka: Os Anos Decisivos', de Reiner Stach. Foto: Editora Todavia

Quão conscientemente ele usava a morte dramaturgicamente em suas obras?

Kafka, como você sabe, viveu apenas 40 anos. O estranho é que seus protagonistas também morrem prematuramente, na meia-idade. Acho que um de seus temas centrais era a futilidade: nossas tentativas fúteis de entender o mundo e fazer as coisas certas. A morte prematura após uma vida insatisfeita é, obviamente, a maneira mais forte de expressar futilidade. Mas também existem outras possibilidades, e Kafka as utilizou. Por exemplo, no conto Um Relatório para a Academia, em que descreve as tentativas tragicômicas e fúteis de um macaco em assimilar o mundo humano. Ou em A Toca, também uma história de animais. Aqui se trata da tentativa de alcançar a segurança máxima e duradoura para a própria vida, ou seja, o que algumas seguradoras nos prometem - uma ilusão, como se vê no final.

Muitas de suas histórias são sobre o esforço inútil de se entender alguma coisa. Isso se aplica a sua vida?

Como disse, a tentativa de compreender sua própria vida levou Kafka a criar uma narrativa, uma espécie de mito particular. Mas por que esse problema era tão urgente para ele? Acho que tem a ver com sua identidade objetivamente obscura. O que ele era mesmo? Um escritor alemão, um escritor austríaco, um escritor judeu? E onde se colocava na tradição literária? Ele disse uma vez: “Sou o fim ou o começo”. Ou seja, ele não sabia se seus textos eram desdobramentos de uma época literária clássica, ou antes, precursores de uma nova época. Sabemos hoje que foi um dos fundadores do modernismo, mas do seu ponto de vista isso estava longe de ser claro. Ele lutou por clareza, mas muitas vezes se movia como se estivesse em um nevoeiro. E isso não é culpa apenas dele. Era um gênio humilde e duvidoso.

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Como a imagem de Kafka mudou nos últimos anos?

Quando se começa a estudar Kafka intensivamente, é difícil a princípio escapar completamente dos preconceitos comuns. Foi o que aconteceu comigo. Eu sabia que ele viveu em uma época muito tensa, mas só aos poucos percebi o grande fardo pessoal que isso significava para ele - por exemplo, em relação à Primeira Guerra Mundial e a sua tuberculose. Enquanto isso, não pergunto mais: por que Kafka fez tão poucas obras?, mas pergunto: como conseguiu se manter tão produtivo sob todas essas cargas? Depois de completar a biografia em três volumes, ocupei-me intensamente com os aforismos de Kafka. Desde então, não tenho mais tanta certeza se é realmente verdade que Kafka era incapaz de ter um pensamento abstrato ou teórico. Nos aforismos, Kafka tenta desenvolver ideias filosóficas muito abstratas com a ajuda de imagens e metáforas. É um pensamento absolutamente original em imagens, do tipo que não encontrei em nenhum outro autor.

E quais textos de Kafka o senhor prefere?

O Castelo é muito menos lido que O Processo - provavelmente porque o enredo é menos dramático e rigoroso e porque Kafka não escreveu um capítulo final. Mas O Castelo é a obra mais complexa de Kafka, porque estamos nos mudando para uma aldeia com múltiplas relações sociais em constante mudança. Também gosto muito da dialética que se desenvolve entre a aldeia e o estranho com o qual é confrontada. No início, as frentes se endurecem, mas aos poucos o estranho começa a se adaptar, enquanto alguns aldeões percebem que existe um mundo fora de sua aldeia. É como se Kafka tivesse feito uma pesquisa etnológica.

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