Afeganistão, 1984. Atiq Rahimi tinha 23 anos quando deixou seu país, após a invasão soviética, andando pelas montanhas geladas até encontrar refúgio no Paquistão e depois exílio na França, onde se tornaria cineasta e escritor. Guerra e exílio são duas questões caras para ele que, aos 56, acaba de lançar o autobiográfico A Balada do Cálamo (Estação Liberdade) e está prestes a partir para Ruanda, para fazer seu novo filme: Nossa Senhora do Nilo, uma adaptação da obra homônima de Scholastique Mukasonga. Ele falou ao Estado por e-mail.
Por que adaptar esse livro? No início dos anos 1990, o horror tinha duas faces: uma afegã e outra ruandesa. Nos dois países, uma guerra fratricida. Fogo, sangue, cadáveres, ruínas e lágrimas invadem os meios de comunicação, mas não a consciência do mundo. Ninguém sabe o que dizer, o que fazer. Eu vivia no exílio, estudando em Paris, incapaz de compreender o mutismo das potências mundiais diante dessas barbáries, quando, numa reportagem de rádio, ouvi os gritos e o choro de um jovem tutsi que acabava de descobrir o corpo decepado do irmão, quando eu também guardava o luto do meu irmão, morto em algum lugar nos desertos afegãos pelos mujahedin. Desde então, o destino desses dois países me atormenta. Por duas vezes tentei produzir um documentário sobre essas guerras e eis-me aqui, 25 anos depois, sempre com a mesma ira, os mesmos questionamentos, a mesma necessidade visceral de conhecer os desastres da história, nomeá-los e filmá-los. É impossível compreender, pela mídia, os sentimentos mais profundos do povo ruandês diante dessa tragédia. Faltam-me palavras e imagens vindas de seus corações, de suas entranhas. E isso está no magnífico e comovente Nossa Senhora do Nilo.
+++ Scholastique Mukasonga não quis escrever livros sobre o horror, mas ele está em todo lugar
Como será o filme? Longe de ser uma crônica escolar, o filme não procura analisar as causas e as consequências do genocídio nem relatar fatos dessa tragédia. Tentamos expor o mecanismo do etnocídio que atormenta a história e a consciência da humanidade, retornando, no filme, a cada época sob diferentes aspectos, mas sempre com um mesmo caminho: a inocência engendra o sagrado, o sagrado engendra o sacrifício e o sacrifício engendra a violência, cujas primeiras vítimas são as mulheres e os jovens. Portanto, é por meio das vozes dessas mulheres e jovens que narramos esse processo. As filmagens começam em outubro, mas parto para Ruanda no dia 13 de julho para fundar uma escola de atores.Que papel a memória ocupa em sua obra? O grande filósofo francês Paul Ricoeur diz que o trabalho de todos os escritores de certo modo é um “trabalho de memória” e não tanto um dever. Portanto, qualquer coisa que escrevemos é a memória que ordena tudo, estrutura tudo, consciente ou inconscientemente. E essa memória toma mais espaço ainda na vida e no trabalho de um escritor exilado como eu.Como vive um exilado, qual é a sua essência? Eu escrevi justamente A Balada do Cálamo para dizer que o exílio não se escreve, se vive. Vivemos a errância, a angústia, a culpabilidade, a ilegalidade, o racismo, a nostalgia. Mas tudo isto ajuda também o exilado a se tornar um ser universal.Um livro, sua escrita, é isso a terra prometida, como você escreve? As palavras são errantes, como o escritor. Sua terra de asilo é o livro.Quais são suas memórias mais ternas e mais assustadoras da vida no Afeganistão? A infância foi um paraíso perdido! A guerra um inferno. Assim, vivi mais no inferno do que no paraíso.Você deixou seu país em 1984. O genocídio de Ruanda ocorreu em 1994. Não faz muito tempo. O que esses episódios nos dizem sobre a fragilidade do mundo? Como evitar novas tentativas de aniquilamento? Por muito tempo a humanidade acreditou que a história tem um sentido. Mas hoje constatamos o contrário, infelizmente. Ela não tem nem sentido nem destino. Do mesmo modo, pensávamos que a razão protegeria a humanidade, mas hoje vemos que a crença prevalece sobre o conhecimento. E, com a crença, surgem a violência, o terror, as guerras santas. Portanto, devemos estar sempre vigilantes.A BALADA DO CÁLAMO Autor: Atiq Rahimi Trad.: Leila de Aguiar Costa Editora: Estação Liberdade (200 págs.; R$ 42)
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