Atrasos, demissões e incertezas pairam sobre o Prêmio Sesc de Literatura; Record pede transparência

A leitura de trecho de ‘Outono de Carne Estranha’, romance sobre um casal gay no garimpo, durante a Flip, causou desconforto entre funcionários da entidade, que começou a repensar o regulamento; editora cita criação de ‘filtro extraliterário’ e ex-funcionário fala em censura

Foto do author Julia Queiroz
Atualização:

O Prêmio Sesc de Literatura, um dos mais importantes do País, já devia estar encerrando as inscrições para a edição de 2024, mas sequer lançou o edital.

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A demora é justificada, pela entidade, como necessária para que possam fazer alguns ajustes, ainda em discussão, e também porque o prêmio deve incluir uma nova categoria, de poesia, este ano.

Nos bastidores, porém, fala-se em tentativa de censura prévia, boicote e demissões desde que Airton Souza, escritor e professor de história, leu um trecho de seu romance premiado, Outono de Carne Estranha, no Sesc Paraty, em novembro, durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). E agora até o Grupo Editorial Record, parceiro desde o início, em 2003, e que lança os livros vencedores, ameaça deixar o projeto.

O que é o Prêmio Sesc

O Prêmio Sesc reconhece o trabalho de autores estreantes nos gêneros romance e poesia. Uma comissão externa lê os originais e escolhe o melhor nas duas categorias. O livro é lançado pela Record e o Sesc Nacional organiza um circuito pelas unidades da instituição, o que ajuda na divulgação da obra e no encontro entre autores e leitores. Desde que foi criado, já revelou nomes como Rafael Gallo, mais recente vencedor do Prêmio José Saramago, Luisa Geisler e André de Leones.

Prêmio Sesc, que geralmente abre suas inscrições no mês de janeiro, ainda não divulgou o edital de 2024. Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO

O que aconteceu durante a Flip

Segundo o Estadão apurou, tudo começou numa noite de celebração, quando o escritor Airton Souza subiu ao palco de um evento comemorativo dos 20 anos do prêmio na Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, ao lado de outros escritores premiados, e leu um trecho de seu romance de estreia, o recém-premiado e publicado Outono de Carne Estranha.

A obra conta a história de um relacionamento homoafetivo entre dois garimpeiros na Serra Pelada, no Pará, nos anos 1980. A partir do romance proibido, o autor narra a realidade do que foi o maior garimpo a céu aberto do mundo e mostra o preconceito e o poder do Estado no local.

A leitura do trecho teria causado desconforto em dirigentes do Departamento Nacional do Sesc, que estavam na plateia. Enquanto o público ainda se preparava para deixar o local, funcionários teriam sido questionados sobre a decisão de fazer essa leitura em público. E o dia, que era para ter sido de festa, virou o que pessoas ligadas ao prêmio classificam como o início de seu fim.

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O professor de história Airton Souza venceu o Prêmio Sesc de Literatura na categoria romance em 2023. Foto: Arqueivo pessoal/Airton Souza

Depois da Flip, uma conversa interna avaliou transferir a gestão da premiação para o Polo Sociocultural Sesc Paraty e foi iniciado um estudo para reformular o edital. A mudança, segundo fontes ouvidas pelo Estadão, seria para que os organizadores tivessem mais controle do que seria premiado - evitando, assim, que livros como O Outono de Carne Estranha chegassem à final.

Até 2023, os vencedores eram escolhidos por um júri independente que não é divulgado até o fim das inscrições. Nesta última edição, os escritores Joca Reiners Terron e Suzana Vargas foram os jurados da categoria romance e Giovana Madalosso e Sérgio Rodrigues, da categoria contos.

Demissão de Henrique Rodrigues

À frente do Prêmio Sesc desde sua criação, em 2003, Henrique Rodrigues, que organizou a programação da entidade na Flip, foi demitido assim que voltou de férias, em janeiro. Ele chegou a testemunhar as primeiras tentativas de mudar o prêmio.

“Ouvi que se eu não gostasse, poderia não participar. Respondi que só poderia não participar porque o nome do que estava sendo feito é um grupo censor”. Rodrigues afirmou que, além de censura, este era um caso de “homofobia”.

Ele diz ainda que “demitir funcionários de Cultura quando chefias não gostam ou entendem sobre o conteúdo apresentado é relativamente comum em Regionais, mas não na sede nacional, que até então costumava combater essa prática”.

Para Rodrigues, que também é escritor, o Prêmio Sesc é relevante justamente por ser avaliada por critérios técnicos e literários de pessoas que não fazem parte da instituição.

O escritor Henrique Rodrigues, idealizador do Prêmio Sesc de Literatura. Foto: Caio Basilio/Divulgação

Reação da Record e resposta do Sesc

A editora Record, por meio de nota enviada ao Estadão, manifestou “extremo incômodo” com uma série de fatos relativos ao prêmio, incluindo a demissão de Henrique Rodrigues. Eles citam ainda o atraso no edital e a possibilidade da entidade criar uma instância de avaliação interna dos livros candidatos ao prêmio, que prejudicaria a imparcialidade da premiação. Leia abaixo na íntegra.

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Um dos pontos ressaltados pela Record é que a demissão foi feita sem comunicação prévia ou consulta à editora. Ao Estadão, Janaína Cunha, diretora de Programas Sociais do Departamento Nacional do Sesc, disse que não poderia discutir os motivos dos desligamentos feitos nos últimos meses por razões éticas. Ela alegou, porém, que as demissões - Henrique Rodrigues não foi o único; Luciana Salles, gerente de Cultura, foi desligada depois - não têm relação com os eventos da Flip.

Segundo Janaína, o prêmio está passando por uma reestruturação e o atraso no edital se deve a mudanças “a favor da melhoria e da ampliação do alcance” da premiação e também ao fato de que ele adicionará a categoria poesia - algo que havia sido anunciado no ano passado.

Sobre o episódio da Flip, ela explica que o desconforto se deu porque, de acordo com ela, crianças estavam presentes no evento e a leitura tinha conteúdo adulto explícito. E sobre a transferência da gestão do prêmio para o Sesc Paraty, ela considera que isso não configura mudança na prática, já que ele é ligado ao Departamento Nacional.

Com relação às alterações no edital para maior controle do Sesc, a diretora disse que as mudanças ainda estão sendo estudadas, que “não há nenhuma definição nesse sentido” e que a “lisura” do prêmio será mantida. A divulgação do edital, segundo ela, deve ocorrer até o início de abril.

A Record, que cobra uma definição - primeiro ao Sesc e agora publicamente - e afirma não estar conseguindo ter acesso ao conteúdo do edital, disse, na nota: “Diante do rumor generalizado de que o Sesc criaria uma instância de avaliação interna dos livros candidatos ao prêmio, posterior à avaliação do corpo de jurados, o Sesc não negou, de maneira cabal e pública, esta hipótese, que acreditamos que funcionaria com um filtro extraliterário e prejudicaria a lisura e liberdade de avaliação do júri”.

“A gente compreende que, para ter um prêmio, só faz sentido se ele tiver uma comissão externa independente e que tenha autonomia para avaliar questões técnicas. Até agora, foi nisso que chegamos. Mais do que isso, não sei, são pensamentos, ideias. Tudo isso pode acontecer no fechamento de um ciclo”, disse a diretora do Sesc.

Circular interna e ‘conteúdo sensível’

O Estadão apurou ainda que, recentemente, circulou uma correspondência oficial para todos as regionais do Sesc, que poderiam receber os premiados no Circuito dos Autores, alertando sobre conteúdo do livro Outono de Carne Estranha.

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De acordo com a Record, “a função da circular deveria ser apresentar os autores premiados e estimular que estes fossem convidados a nelas se apresentar ao público. Este ano, no entanto, a circular parece fazer o contrário, pelo menos no que se refere a Outono de Carne Estranha, de Airton Souza”.

Segundo o documento, “por tratar-se de conteúdo sensível”, o romance “pode ativar gatilhos emocionais e psíquicos”, e deve ser acompanhado de um trabalho específico de mediação, no qual o público seja orientado e informado previamente do conteúdo do livro, e que aceite formalmente ser exposto a ele antes de assistir a uma eventual palestra do autor”, conforme descrito na nota da editora.

O Sesc argumentou que a circular tinha função de alertar para a classificação indicativa do livro. “Esse documento é utilizado porque temos uma equipe volumosa e, quando algo chega a algum departamento regional, precisamos dizer se ele é adequado para determinada faixa etária”, justificou Janaína.

Airton Souza disse ao Estadão que foi pego de surpresa quando soube da reação após a leitura na Flip e a circulação do ofício. “Jamais imaginaria que o livro causaria uma situação tão homofóbica quanto tem acontecido nos bastidores.”

Divulgação dos livros

O circuito dos vencedores da edição de 2023 também está incerto. No ano passado, os vencedores de 2022 começaram a circular pelas unidades do Sesc em abril, mas, conforme confirmou Airton Souza ao Estadão, a um mês do que deveria ser o início da turnê, ele ainda não recebeu nenhuma informação sobre quando começará a viagem pelo País. Esse circuito, que promove o encontro entre autores e leitores, é uma parte importante do prêmio.

Segundo a Record, o agendamento das viagens é feito entre janeiro e fevereiro. O Sesc alegou que a escritora Bethânia Pires Amaro, que venceu a categoria contos pelo livro O Ninho, estaria impedida de viajar no primeiro semestre porque ia ter um bebê.

“Mesmo que o fosse, não nos apresentaram as razões para adiar as viagens do outro autor premiado, Airton Souza. Embora essas viagens pelo Brasil não sejam uma obrigação contratual do Sesc, são uma tradição na dinâmica de divulgação dos livros premiados, e foram prometidas aos autores na cerimônia de entrega do prêmio”, diz a nota.

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A editora informou também que a ida dos vencedores ao ao festival de Óbidos, em Portugal, foi “cancelada neste ano, unilateralmente e sem maiores explicações, contrariando uma prática que se repete desde 2018″.

Bethânia Amaro é advogada e ganhou Prêmio Sesc com seu primeiro livro de contos em 2023. Foto: Arquivo pessoal/Bethânia Amaro

Ao Estadão, Bethânia, mãe recente, disse que comunicou à equipe do Sesc que não poderia comparecer a todos os eventos do ano. Ela, porém, pediu para “não ser prejudicada por esta condição” e para “ter a oportunidade de receber o calendário e escolher os eventos”.

Até sexta-feira, 1º, não havia nenhuma definição acerca do circuito. Nesta segunda, 4, no entanto, Bethânia contou que a entidade garantiu que o cronograma do circuito sairia nesta terça-feira, 5. Contudo, Janaína Cunha disse ao Estadão que a agenda de viagens ainda não está completa e que a organização ainda está esperando retorno de unidades regionais para marcar os eventos.

“O atraso na definição do circuito não prejudica só a mim, mas também à Bethânia. Se levarmos em consideração esse processo, o transcurso que o projeto tem, é um boicote geral. Nós dois estamos sendo penalizados por esse silêncio do Sesc em relação ao prêmio e ao circuito”, finaliza Airton Souza, que vive em Marabá (PA). Leia mais sobre seu livro, aqui.

Leia a nota do Grupo Editorial Record

“O Grupo Editorial Record gostaria de tornar público e oficial seu extremo incômodo com os seguintes fatos relativos ao Prêmio Sesc de Literatura, do qual tem sido parceiro desde sua criação:

  • a demissão de dois funcionários do Sesc responsáveis diretos pelo prêmio e pela interlocução entre o Sesc e a editora, entre eles o criador intelectual do prêmio, o escritor Henrique Rodrigues, sem qualquer comunicação prévia ou consulta à editora;
  • a não publicação do edital do prêmio 2024, que deveria ter ocorrido em início de janeiro, o que compromete os prazos de avaliação, de anúncio dos vencedores e, posteriormente, de edição dos livros premiados;
  • os adiamentos sucessivos (de novembro de 2023 até agora) do acesso da Record ao teor tanto do novo edital do prêmio, que o Sesc nos disse que produziria, quanto da renovação do convênio com a editora;
  • diante do rumor generalizado de que o Sesc criaria uma instância de avaliação interna dos livros candidatos ao prêmio, posterior à avaliação do corpo de jurados, o Sesc não negou, de maneira cabal e pública, esta hipótese, que acreditamos que funcionaria com um filtro extraliterário e prejudicaria a lisura e liberdade de avaliação do júri.

Especificamente em relação aos livros premiados em 2023, Outono de carne estranha, de Airton Souza, e O ninho, de Bethânia Pires Amaro, há outros fatos muito preocupantes:

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  • o agendamento das viagens de ambos os autores pelas regionais do Sesc em todo o Brasil está atrasado. Normalmente feito entre janeiro e fevereiro, até agora nada foi marcado. As viagens deveriam ter início agora em março. A alegação por parte do Sesc de que a escritora Bethânia Pires Amaro, por questões pessoais, estaria impedida de viajar no primeiro semestre, não é confirmada pela escritora. E mesmo que o fosse, não nos apresentaram as razões para adiar as viagens do outro autor premiado, Airton Souza. Embora essas viagens pelo Brasil não sejam uma obrigação contratual do Sesc, são uma tradição na dinâmica de divulgação dos livros premiados, e foram prometidas aos autores na cerimônia de entrega do prêmio.
  • recentemente, a direção do Sesc enviou a todos os seus núcleos regionais uma circular, cuja função deveria ser apresentar os autores premiados e estimular que estes fossem convidados a nelas se apresentar ao público. Este ano, no entanto, a circular parece fazer o contrário, pelo menos no que se refere a Outono de carne estranha, de Airton Souza. Segundo o documento, o romance, “por tratar-se de conteúdo sensível”, “pode ativar gatilhos emocionais e psíquicos”, e deve ser acompanhado de um trabalho específico de mediação, no qual o público seja orientado e informado previamente do conteúdo do livro, e que aceite formalmente ser exposto a ele antes de assistir a uma eventual palestra do autor.
  • fomos informados pelo Sesc de que a ida dos autores ao festival de Óbidos, em Portugal, foi cancelada neste ano, unilateralmente e sem maiores explicações, contrariando uma prática que se repete desde 2018.

Tantos elementos nos fazem temer pelo importante papel que o Prêmio Sesc desempenha na cena literária brasileira. O Grupo Editorial Record acredita que o compromisso com a liberdade de expressão e de criação é parte inseparável da atividade editorial, e em nome desses valores tem a obrigação de se manifestar, em defesa da lisura e da transparência que sempre caracterizaram o Prêmio Sesc, e também em defesa de seus autores, que estão sendo prejudicados. Consideramos de suma importância que os fatos acima listados sejam levados em conta, e que as eventuais modificações no edital do prêmio sejam revistas pelo Sesc. O sucesso do prêmio de literatura ao longo dos últimos vinte anos é o maior argumento para que nada mude nas regras de inscrição e avaliação.”

GRUPO EDITORIAL RECORD

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