A certa altura de Minha Vida sem Banho, novo romance do paulistano Bernardo Ajzenberg, lemos (e peço desculpas pela citação um tanto longa): “Penso muito na paciência e na perseverança dos maratonistas ou na calma e autoconfiança dos nadadores de longos percursos, aquelas pessoas que avançam devagar numa piscina, indo e voltando, sempre cientes de que chegarão ao seu destino, mantendo a velocidade e o ritmo das braçadas, sabendo que cumprirão aquilo que tinham se proposto fazer”. Creio que essa descrição também vale para o estilo do autor. Por mais que esse não seja um romance longo (189 páginas que se permitem ler com extrema fluidez), ele, contudo, aprofunda-se em temas tão díspares quanto o ambientalismo, o mais recente período ditatorial brasileiro e o holocausto.
Em sua estrutura, alternam-se três vozes: Célio, funcionário de um “instituto” que luta pela preservação do meio ambiente; Débora, namorada de Célio, em viagem para Manaus; e Wiesen, amigo dos pais de Célio, Waisman e Flora, sobre os quais discorrerá a fim de esclarecer, até onde for possível, alguns segredos inerentes à sua longa relação.
O mote da obra é a decisão tomada por Célio de não tomar mais banho, e que, embora intempestiva, não é gratuita: além das razões ambientais, explanadas com cuidado, há outras, não exatamente mensuráveis, mas que dizem respeito à sua vida, descrita como “um riacho franzino que passava sem graça por um terreno de mata descolorida”. Ele e Débora se desentenderam antes que ela embarcasse para Manaus. Agora, à distância, ela investe, por e-mails e cartas, num furioso e desesperado diálogo de surdos, buscando compreendê-lo e a si própria.
O terço narrado por Wiesen diz respeito, primeiro, ao seu passado e ao de Waisman como militantes contrários à ditadura militar brasileira, e depois, ou paralelamente, no que inclui Flora, ao triângulo amoroso que eles mantiveram por décadas. Waisman é um personagem particularmente conflituoso, e em sua constituição (ou também como elemento desagregador) está o fato de que seu pai era um refugiado austríaco, judeu, que escapara por pouco do genocídio nazista. Desiludido com os ideais revolucionários que nortearam um bom pedaço de sua vida, Waisman se entrega a uma extensa pesquisa sobre o holocausto, como “se estivesse preparando a defesa de uma tese acadêmica”. Flora, colocada entre os dois amigos, é uma espécie de centro irradiador de perturbação; diagnosticada com câncer, opta por não fazer nenhum tratamento, entregando-se à doença e à morte.
Ajzenberg articula muito bem essas diversas vertentes narrativas, com a paciência e a perseverança dos maratonistas, indo e voltando no tempo. Ele jamais se perde nas ramificações, mas trabalha para que elas convirjam no desfecho, quando, inclusive, a própria estrutura do romance é, por assim dizer, justificada. Assim, mesmo relatos paralelos, como aqueles sobre o pai de Waisman ou acerca de um jornalista que também se colocou em rota de colisão com a ditadura, Koichiro, são passagens de enorme força narrativa, capazes de iluminar momentos históricos distintos e tão sombrios quanto essenciais para compreendermos melhor os personagens. Noutras palavras, é o cuidado artesanal do autor que impede o romance de se dispersar, garantindo sua coesão e seu impacto.
Articulado dessa forma, pela convergência das vozes que o constituem, pelo alinhavar de experiências e vidas diferentes entre si, mas complementares na medida em que se iluminam umas às outras, Minha Vida sem Banho reinveste a memória e a imaginação da força que, às vezes, parecem perder; elas são, afinal, os ingredientes da melhor literatura e, consequentemente, o antídoto contra a ensurdecedora derrisão da barbárie.
MINHA VIDA SEM BANHOAutor: Bernardo Ajzenberg Editora: Rocco (192 págs., R$ 24,50; R$ 16 o e-book)
André de Leones é autor do romance Terra de Casas Vazias (Rocco), entre outros Confira trecho da obra:
"Provavelmente um curto-circuito fez queimar a resistência do boiler da casa. Até me despi, mas no trajeto entre o quarto e o banheiro mudei de ideia: o simples pensamento de entrar debaixo do chuveiro gelado no inverno me causou arrepio; então, desisti. Nem estava suado - ao contrário, a noite fora fria. Ativei o olfato para verificar a situação do corpo e concluí que podia, sim, dispensar o banho naquele começo de manhã.
Trabalho em um instituto cujo objetivo principal, entre outras missões, é elaborar cálculos que, de forma clara, didática e precisa, demonstrem a grandiosidade dos riscos existentes, para a humanidade e para o planeta como um todo, diante do consumo desenfreado e irresponsável de água - especialmente nas grandes cidades.
Integro um grupo encarregado de construir exemplos criativos baseados na vida real capazes de convencer as pessoas a mudarem seus hábitos cotidianos de modo a mitigar riscos e, assim, preservar esse tão valioso tesouro que é a água, e, a partir dela, todos os seres marinhos, os animais e os homens. (O que mencionei aqui em caracteres itálicos foi extraído de um documento interno que redigi alguns meses atrás, a pedido de um jornalista, resumindo as razões de ser do Instituto).
Nessa manhã, quando parei de tomar banho, dediquei-me ao trabalho com mais afinco que de costume. Não consegui, por outro lado, deixar de pensar que, considerando que um banho médio dure 15 minutos, eu tinha deixado de gastar 135 litros de água; mensalmente, se continuasse sem banho, calculei, seriam mais de quatro mil litros, ou cerca de quatro metros cúbicos de água. Em termos financeiros, isso representaria algo em torno de 16 reais, ou seja, perto de trinta por cento da minha conta de água de solteiro ao fim do mês.
Diversas vezes, ao longo do dia, pensei em buscar na internet algum serviço especializado para trocar a resistência do boiler - nunca tinha me acontecido isso - ou fazer seja lá o que fosse preciso para trazer a água quente de volta. Mas nem sequer esbocei uma pesquisa. Recordei que, na adolescência, costumava passar até dois ou três dias sem tomar banho - e não me sentia mal. Por que não retomar a ideia, ao menos a título de experiência?"
Minha vida, nessa altura, era um riacho franzino que passava sem graça por um terreno de mata descolorida. Fora do trabalho no Instituto, vivia preso à televisão ou surfando horas sobre ondas de entulhos supostamente informativos na internet; muito de vez em quando ia ao cinema; raramente a um jogo de futebol. Devido a uma artroscopia no joelho esquerdo a que me submetera no ano anterior, tinha suspendido toda atividade física.
O mais decisivo, na verdade, era que minha namorada passaria ainda três semanas, de uma temporada de dois meses, em Manaus por conta de uma espécie de estágio na filial da empresa de componentes eletrônicos onde trabalhava. E eu, além disso, não tenho amigos (uma das heranças deixadas por meus pais, que nunca visitavam ou eram visitados por ninguém durante todo o tempo que morei com eles)."
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