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Best-seller mundial narra a espetacular história do livro

Em ‘O Infinito em um Junco’, a espanhola Irene Vallejo traça uma jornada que vai desde a Grécia Antiga até a Guerra da Bósnia

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Foto do author Ubiratan Brasil

Quando decidiu refletir sobre as origens e o destino do livro ao longo dos séculos, a jovem escritora espanhola Irene Vallejo entrou em um mundo fascinante não apenas pela forma de compreensão da inteligência humana, mas também pelas deliciosas histórias que colecionou que envolvem desde a disputa entre imperadores por bibliotecas até a discreta fofoca de que o mais célebre discurso proferido por Péricles, proeminente político da Grécia Antiga, foi escrito por sua mulher, Aspásia de Mileto.

A escritora espanhola Irene Vallejo, autora de O Infinito em um Junco. Foto: Santi Basallo

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“Acredito que a literatura é capaz de explorar a realidade com uma profundidade palpitante que raramente ocorre em nossos relacionamentos, por trás das fachadas e máscaras atrás das quais nos refugiamos. A humanidade muitas vezes escreve o que não ousaria dizer. Essas revelações, essas confidências, essas buscas profundas nos aproximam de pessoas que viveram séculos atrás, nas quais nos reconhecemos”, conta Irene ao Estadão, em entrevista sobre o livro O Infinito em um Junco (Intrínseca), que chega agora ao Brasil carregado de glórias: traduzida para mais de 30 idiomas, a obra foi eleita uma das melhores de 2020 pelo jornal americano The New York Times.

A literatura nos lembra que podemos nos identificar com uma pessoa nascida em outro país e nos sentir mais próximos dela do que de nossos contemporâneos? Acredito que a literatura é capaz de explorar a realidade com uma profundidade palpitante que raramente ocorre em nossos relacionamentos, por trás das fachadas e máscaras atrás das quais nos refugiamos. A humanidade muitas vezes escreve o que não ousaria dizer. Essas revelações, essas confidências, essas buscas profundas nos aproximam de pessoas que viveram séculos atrás, nas quais nos reconhecemos. Quando leio Heródoto ou Safo, Tácito ou Sulpícia, sinto que estão falando de nós. E a uma altura em que tendemos a sublinhar as diferenças que nos separam, a literatura pode privilegiar uma visão mais cosmopolita e aberta. Os livros registram o que fomos e o que superamos, o que nos machucou e o que nos melhorou. Ao longo dos séculos, eles passaram de mão em mão – testemunhas de nossas vidas e de uma corrida de revezamento – e conseguiram manter as gerações mais próximas.

Já comentamos sobre a, digamos, tímida presença da Bíblia no livro. O que você poderia dizer sobre isso? O livro tem um fio condutor que pode parecer livre e digressivo, mas é muito pensativo. Escolho as obras que menciono por sua relação com os temas que quis explorar neste ensaio. Portanto, a Bíblia aparece nos contextos em que explica mudanças e desenvolvimentos na história do livro como formato. Por exemplo, dedico um capítulo para discutir a fascinante história da tradução do Antigo Testamento hebraico para o grego em Alexandria – a famosa Septuaginta – e também discuto a importância do cristianismo no sucesso dos livros como os conhecemos. Os cristãos defendiam o códice, ou livro de páginas, como uma ruptura simbólica com o judaísmo e com o paganismo, que preferia os pergaminhos. A razão é que os códices favorecem leituras furtivas, escondidas dos olhos do poder. Vítimas de perseguição por parte das autoridades pagãs durante séculos, obrigados a procurar esconderijos e interromper abruptamente seus encontros, organizaram-se em pequenas comunidades clandestinas. O livro de bolso era mais fácil de esconder às pressas nas dobras da túnica e era conveniente para transportar sorrateiramente nas viagens apostólicas. Todas as vantagens enormes para os leitores que tinham que manter seus textos em segredo. Aqueles de nós que já leram às escondidas, desafiando a proibição dos adultos – no segredo da noite, em horas intoleráveis para as crianças, sob a camuflagem do cobertor, com a lanterna acesa, desligando-a cada vez que soam alguns passos nas proximidades – , somos descendentes diretos desses primeiros leitores furtivos. Não devemos esquecer que o livro de páginas teve sucesso em grande parte porque favoreceu a leitura clandestina, negada, não consensual.

O livro foi publicado pouco antes do início da pandemia, e você já falou muitas vezes sobre pandemias na literatura: a peste no acampamento grego em A Ilíada, a quarentena que atrasa o mensageiro em Romeu e Julieta. Os livros voltam a ocupar o centro das atenções e tornam-se o nosso colete salva-vidas? Perante a perplexidade e a angústia que todos sentimos no confinamento, decidi partilhar todos os dias nas redes sociais evocações de clássicos que descrevem situações semelhantes: desde a Ilíada, Édipo Rei, Filoctetes ou a praga de Atenas em Tucídides e Lucrécio, à Decameron, Romeu e Julieta, os namorados de Manzoni ou o Amor na época do cólera. Senti que naqueles momentos era reconfortante insistir que não é a primeira vez que enfrentamos uma pandemia e que coletivamente sempre sobrevivemos. Talvez a peculiaridade dessa epidemia seja que quase toda a humanidade teve que enfrentar esse mal-estar quase ao mesmo tempo. É assim que nasce uma oportunidade de nos entendermos além das fronteiras e das distâncias. Acredito que a consciência de nossa fragilidade compartilhada pode nos ajudar a entender a necessidade de colaborar e fortalecer as comunidades que garantem esse apoio mútuo. O filósofo Sêneca em suas famosas Epístolas a Lucílio descreveu a convivência como uma arquitetura de cuidado: “As mãos devem estar dispostas a ajudar. A sociedade é como uma abóbada, que desabaria se algumas pedras não suportassem outras, e só se sustenta pelo apoio mútuo”.

Como é sua relação com a literatura latino-americana? A literatura latino-americana estava muito presente na biblioteca de meus pais, onde navegava, mergulhei e fiz longas excursões desde a infância. Muitos dos exemplares eram livros publicados no México ou na Argentina, já que a maioria desses autores, junto com os exilados espanhóis que os brasileiros acolheram – como Rosa Chacel no Rio de Janeiro –, foram banidos durante a ditadura franquista. Minha mãe me descreveu as perigosas incursões nos fundos das livrarias onde esses livros eram vendidos clandestinamente: César Vallejo, Neruda, Carpentier, Rulfo, Onetti ou Cortázar. Ela sempre me incentivou a ler literatura internacional e me transmitiu seu entusiasmo. Graças a ela descobri Machado de Assis, que fascina a nós dois. Mais tarde, quando comecei minhas próprias buscas, encorajei-a a ler Hilda Hilst e Clarice Lispector. Sinto uma extraordinária proximidade e admiração pela vitalidade da literatura latino-americana, que em casa aprendi a identificar com a liberdade, com a criatividade, com a experimentação.

Hoje vivemos tempos sombrios, com radicalismos em vários países. Qual é a função democrática que você observa na literatura? Gostaria de esclarecer que, na minha opinião, os livros não devem ser sacralizados. Há livros melhores e piores, há benéficos e maléficos, mas também ambíguos, contraditórios e cheios de claro-escuro. É importante saber escolher e abordá-los com espírito crítico. Dito isso, acredito que a leitura faz parte da preparação necessária para viver em uma democracia. Desde que os gregos tentaram pela primeira vez há milênios, esse sistema é o mais exigente e incrível que já experimentamos. Pretende criar uma convivência que não se sustenta na força, mas se baseia em uma delicada urdidura de acordos e uma conversa incessante. Da palavra 'leitor' deriva o termo 'eleitor'. Na rotina diária da experiência democrática, tomamos decisões como eleitores sobre questões que terão consequências cruciais na vida de outras pessoas. O teatro, os livros, a arte em geral colocam-nos na pele dos outros, nos seus olhos e nas suas paixões. A capacidade de imaginar a experiência dos outros deve ser enriquecida se quisermos estabelecer acordos e evitar a divisão em facções amargas. Quanto mais habilidosos formos em nos colocar aos olhos dos outros, mais sólida será a democracia que construímos.

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A admiração e a fantasia são fundamentais para criar um leitor apaixonado? Segundo Aristóteles, a maravilha é a origem do próprio pensamento e da filosofia; a fantasia nutre nossa criatividade. São dois traços de caráter altruísta que desencadeiam o apetite pela leitura. Acredito que seja lido por prazer, não em busca de aperfeiçoamento ou lucro. Os benefícios da leitura chegam sem querer, invisíveis e submersos nesse fluxo de alegria. A leitura pode se tornar útil porque primeiro amamos sua bela inutilidade. Mais tarde, olhando para trás, quase de surpresa, descobrimos que nela aprendemos muito sobre a alteridade, sobre a vida frágil que vivemos. Ele eletrifica nosso cérebro, alimenta a criatividade. Ele nos resgata da pressa e do estereótipo do filho, nos ensina o bom uso da lentidão.

Até hoje somos fascinados por escritores difusos e obscuros como Kafka. Você arriscaria uma explicação sobre isso? A literatura às vezes é uma tentativa imprudente de escrever o bem sobre o mal. Talvez por isso, um halo de suspeita ronda aqueles que se aventuram nas perniciosas páginas dos livros, frequentando companhias tão desaconselháveis quanto as trevas, os abismos e a perversão. Fico profundamente comovida com as palavras de Clarice Lispector em Um Sopro de Vida: “Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto – e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio”. Essa ideia é muito antiga: há milênios se pensava que a leitura era um impedimento para uma vida decente porque inspirava desejo e fantasia. Rousseau escreveu no prólogo de La Nouvelle Heloise que as jovens castas não deveriam ler romances. Recentemente, tive a oportunidade de ver no México alguns dos poucos códices mesoamericanos que sobreviveram ao terrível incêndio da conquista espanhola. Estamos preocupados com as baixas taxas de leitura agora, mas ao longo da história, quando havia muito menos livros e pessoas alfabetizadas, o perigo de ler demais era bastante alarmante. As ficções sempre sofreram com a acusação de espreitar o perverso, mas é aí que reside o seu poder. Graças à imaginação, exploramos em território seguro os dilemas e conflitos que a vida nos lança. Conhecê-los nos permite aprender, escolher, errar quase sempre, acertar talvez. É ingênuo acreditar que, se ninguém mencionar ideias ruins, elas não ocorrerão.

Você acha que o mal é um aliado da literatura? Acredito que a literatura visa explorar o nosso interior, tanto os espaços luminosos quanto o subsolo escuro. Não creio que haja uma aliança entre o mal e a escrita, mas entre a criação e o humano em todas as suas facetas. Cada artista inventa o seu próprio percurso e mapeia os territórios que mais o fascinam. A bondade, como o mal, tem complexidades interessantes. Nosso Quixote, por exemplo, mergulha nas contradições de um personagem que aspira a ser justo e ajudar pessoas carentes, mas que comete grandes erros ao tentar colocar suas ideias em prática. O Idiota, de Dostoievski, é seu herdeiro. Uma literatura que só se interessasse pelo mal seria tão pobre quanto a literatura exemplar.

E aqui derivamos outro debate contemporâneo: a corrente que defende eliminar dos clássicos as palavras e ideias que dos nossos parâmetros atuais achamos inadequadas, especialmente os livros infantis e juvenis. Na minha opinião, é preciso aspirar que os jovens entrem em contato com criações complexas, não com manuais de conduta. Personagens malignos são um ingrediente crucial nos contos tradicionais, para que as crianças aprendam que o mal existe. Mais cedo ou mais tarde eles terão notícias dela (dos valentões que os assediam no pátio da escola aos tiranos genocidas). O maravilhoso e perturbador Flannery O'Connor escreveu que aquele que “lê apenas livros edificantes está seguindo um caminho seguro, mas um caminho sem esperança, porque lhe falta coragem. Se por acaso você lesse um bom romance, saberia muito bem que algo está acontecendo com ele”. Sentir algum desconforto faz parte da experiência de ler um livro; há muito mais pedagogia na inquietação do que no alívio. Podemos colocar toda a literatura do passado sob a faca para cirurgia plástica, mas então ela vai parar de nos explicar o mundo. 

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Trechos:

"Tal como sua cidade, Alexandria, Cleópatra encarna uma peculiar fusão de cultura e sensualidade. Plutarco diz que, na realidade, ela não era uma grande beleza. As pessoas não paravam na rua para olhá-la. Mas, em compensação, transbordava de magnetismo, inteligência e lábia. O timbre de sua voz tinha tal doçura que encantava todos que a ouviam. E sua língua, prossegue o historiador, se adaptava ao idioma que quisesse como um instrumento musical de muitas cordas. Era capaz de falar sem intérprete com etíopes, hebreus, árabes, sírios, medos e partos. Astuta e bem informada, Cleópatra ganhou vários embates na luta pelo poder dentro e fora do seu país, embora tenha perdido a batalha decisiva. O problema é que só se falou dela pelo lado do inimigo.

Os livros também desempenham um papel importante nessa história tempestuosa. Quando Marco Antônio se considerava prestes a governar o mundo, quis deslumbrar Cleópatra com um grande presente. Sabia que nem ouro, nem joias, nem banquetes conseguiriam acender uma luz de fascínio nos olhos da sua amante, que estava acostumada à fartura dessas coisas no seu dia a dia. (...) Por isso, Marco Antônio escolheu um presente que Cleópatra jamais desdenharia com uma expressão de tédio: pôs aos pés dela 200 mil volumes para a Grande Biblioteca. Em Alexandria, os livros eram combustível para as paixões."

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