AP - Os biógrafos tentam o melhor que podem para se colocar no lugar de seus biografados. Charles Leerhsen deu um passo adiante: ele dormiu no mesmo quarto do hotel francês onde Anthony Bourdain se suicidou, ganhando uma perspectiva única.
“Algumas pessoas me criticaram, dizendo que é macabro e que sou o tipo de repórter que vasculha as latas de lixo das pessoas”, disse Leerhsen, autor de Down and Out in Paradise: The Life of Anthony Bourdain. “Mas todos os melhores biógrafos - e eu não me colocaria em suas fileiras - e também todos os caras que ganham prêmios acreditam que você realmente precisa ir onde a pessoa estava.”
Ver o mesmo que o chef, escritor e apresentador de TV viu em seu último dia de vida em 2018 é apenas parte da pesquisa exaustiva de Leerhsen para o livro lançado esta semana, que incluiu 80 entrevistas e material arquivado no laptop de Bourdain, além de diários e de seus textos finais.
O retrato impressionista que surge é de um homem complexo que combinou arrogância e frieza costurada com profunda insegurança, carência e consciência da imagem. Leerhsen o chama de “um extraordinário manequim de teste de colisão”.
O livro traça a vida de Bourdain desde sua infância em Leonia, Nova Jersey, até abandonar a faculdade, lavar pratos em Cape Cod e passar anos como chef em Manhattan, onde construiu uma personalidade ao estilo punk rock e se tornou viciado em heroína.
“Esse vício foi a realização de um sonho de quase toda a vida”, escreve o autor.
A grande chance de Bourdain veio depois que um artigo de revista foi expandido para Cozinha Confidencial, seu livro de memórias perversamente engraçado sobre o submundo dos restaurantes. Isso o levou a uma vida como contador de histórias de TV itinerante, interrompida aos 61 anos.
“Eu estava curioso sobre como um cara que tinha o melhor emprego do mundo, que parecia tão legal e era tão inteligente e tão sofisticado - como ele poderia fazer isso?” disse Leerhsen. “Minha razão para escrever o livro a partir desse rastro.”
O que encontrou foi um homem propenso a exageros e workaholic, mesmo em detrimento de sua felicidade. “Acho que ele teve dificuldade em manter esse estado de sucesso e felicidade”, disse Leerhsen.
Ele cita uma informação reveladora de uma ex-namorada sobre aquela figura da TV que parecia ser a essência da masculinidade: Bourdain foi na verdade um adolescente durante toda a vida. Ele tentou ativamente ser um rebelde, mas tinha um alerta do Google definido para seu próprio nome.
A biografia sem verniz retorna repetidas vezes ao aspecto performativo da personalidade de Bourdain: “A autenticidade, no sentido de ser a coisa real e não um fingidor, foi sua preocupação ao longo da vida”.
A reportagem de Leerhsen encontra uma “crescente detestabilidade” nos últimos dois anos de Bourdain: “Tony afastou as pessoas ou deixou relacionamentos duradouros terminarem até junho de 2018, não havia mais ninguém em sua vida para desempenhar o papel de pessoa que planeja seu funeral”.
A parte mais triste do livro são os textos angustiados de Bourdain nos dias que antecederam a sua morte. Ele mantinha um relacionamento doentio de longa distância com a atriz Asia Argento e estava tomando esteroides, hormônio do crescimento humano e Viagra, relata Leerhsen.
“Você foi imprudente com meu coração”, escreveu Bourdain a Argento na noite anterior à sua morte. O livro revela que Bourdain pesquisou o nome dela “centenas de vezes” nos últimos três dias depois que um tablóide publicou fotos dela com outro homem.
“Ele se transformou em “um personagem de um romance sórdido e levemente perturbado de James Ellroy, um amante condenado e desesperado”, escreve Leerhsen. O último site que Bourdain visitou foi um serviço de prostituição.
O livro não é autorizado; Leerhsen não conseguiu falar com muitos no círculo íntimo de Bourdain no registro e confia em muitas fontes confidenciais. Argento, evidentemente, não participou. Mas é um perfil muito detalhado, revelando tudo, desde os pôsteres nas paredes de seu dormitório até sua marca preferida de gin.
O irmão distante de Bourdain, Christopher, chamou o livro de ficção ofensiva e difamatória, mas Leerhsen o chamou de não confiável e disse que ninguém mais se apresentou para desafiar seu trabalho.
A editora Simon & Schuster, em comunicado, defendeu o livro, dizendo que “é uma biografia sincera e abrangente”, além de ser “baseada em extensas entrevistas com pessoas que o conheceram intimamente”.
Leerhsen é ex-editor executivo da revista Sports Illustrated e, entre seus livros anteriores, destacam-se biografias de Ty Cobb e Butch Cassidy. Ele disse que seu relato de Bourdain, com falhas e tudo, serve como um corretivo para muitos perfis bajuladores.
“Eu não entendo as pessoas que dizem: ‘Não me conta isso, quero me lembrar dele de uma certa maneira’”, disse o biógrafo. “Eu estava curioso. Se você não está curioso como eu estava, então Deus te abençoe, sabe?”
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