Biografia revela a trajetória do Brasil, de seus protagonistas e do seu povo

Obra de Lilia Schwarcz e Heloisa Starling cobre desde antes da chegada dos portugueses até o primeiro governo FHC

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Foto do author Maria Fernanda Rodrigues

Há poucos dias, uma jornalista brasileira trocou a foto do seu perfil do Facebook e recebeu uma avalanche de insultos (“macaca”, “escrava”, “modelo de senzala”). Em 1982, durante uma blitz da Polícia Militar numa favela carioca, suspeitos foram presos pelo pescoço e amarrados uns aos outros por uma corda. Eram todos negros. A cena, com variações, se repete todos os dias neste que foi o último país ocidental a abolir a escravidão - e que sempre acreditou na história oficial que diz que aqui ela foi mais amena do que em outros países, e que o encontro com o colonizador foi pacífico.

As historiadoras Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling mostram que não foi bem assim. Elas lançam na terça-feira, dia 12, com debate, o livro Brasil: Uma Biografia. Recheado de dados, fatos, interpretações, personagens e também curiosidades e anedotas, o livro acompanha a construção do País desde antes da chegada dos portugueses, que dizimaria boa parte da população local, até a primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso. Algumas características de seus dois mandatos, assim como dos de Lula e Dilma, aparecem na conclusão.

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“Só podemos apreender os processos que se finalizaram e os atores ainda estão em cena”, justifica Lilia. “Na conclusão, nos demos o direito de falar sobre grandes temas, como a corrupção, que não é endêmica, mas sim histórica e uma construção social. E também não é só nossa. Nos permitimos traçar as grandes linhas do presente, mas sem preocupação, como nos capítulos, de analisar sistematicamente”, completa. Assuntos como a Comissão da Verdade também aparecem no final.

A obra nasceu de uma encomenda da Penguin, que, por causa da Olimpíada de 2016, queria publicar na Inglaterra, como explica Lilia, “um livro não tão grande e que fosse, ao mesmo tempo, narrativo e interpretativo, bom de ler e não vocacionado para um uso escolar”. É bom de ler, ajuda a juntar os fios da meada e, melhor, é uma importante ferramenta para compreendermos onde estamos e por que chegamos até aqui. Não ficou exatamente pequeno. São 693 páginas só de textos, fora os cadernos de imagens que completam a narrativa - a foto dos homens amarrados pelo pescoço está lá bem como o registro de um treinamento de tortura feito por soldados do Batalhão da Guarda Presidencial em Brasília, em 1972. As notas foram organizadas no fim do livro, o que torna a leitura ainda mais fluida. Também no final, há uma ampla cronologia, com os principais acontecimentos no Brasil, em Portugal e no mundo. O livro sairá, ainda, nos EUA e Portugal.

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Heloisa Starling explica que as autoras tentaram construir uma reflexão do Brasil por dois eixos. O primeiro é o fato de termos uma sociedade, desde o início, violenta, hierárquica e desigual. O outro é que, também desde de sua origem, ela desenha uma história de luta por autonomia, construção de direitos e liberdades. “Essa ideia de que o Brasil é essas duas coisas ao mesmo tempo é o fio condutor”, diz.

Outra questão de fundo é a mestiçagem, completa Lilia. “Pensar a mestiçagem não só como união, mas como separação. Ver quais são as ambivalências de um processo em que a escravidão é uma linguagem desde que o Brasil não é Brasil, porque desde os indígenas ela já está aqui. Carregamos essa linguagem que tem consequências no momento presente. Afinal, não se passa pelo fato de ter sido o último país a abolir a escravidão com leveza.”

Acompanhamos, assim, a história de uma nação fundada da exploração, da violência, do extermínio, do desrespeito e da ganância, mas que desde os tempos mais remotos foi às ruas para se manifestar - por interesses individuais, como nas primeiras revoltas contra os impostos e o aumento de preços, ou por questões como liberdade, justiça e democracia. 

Neste projeto que durou cerca de dois anos e meio, as autoras dizem que foram “atropeladas” pelo Brasil. No processo, alguns personagens como Tancredo Neves e Ulysses Guimarães cresceram por sua coerência política e ética, explicam, e conquistaram espaço. O mesmo ocorreu com momentos, como as regências. Uma curiosidade: o capítulo sobre o período foi escrito durante as manifestações de junho; na pesquisa, o povo pedia a queda de Pedro I, a constituição, liberdades democráticas; no presente, o brasileiro pedia algo assim e muito mais.

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Uma história composta de múltiplas narrativas

Biografar um país não é das tarefas mais simples. “Em vez de pensar uma biografia como uma elevação, cada vez mais pensamos nela como uma trajetória. E toda trajetória, seja pessoal ou coletiva, como esta, é permeada de avanços e recuos, contradições, acertos, enganos, vacilações”, conta Lilia Schwarcz. 

Para ajudar a dar conta dessa história, as autoras recorreram, também, a produções culturais da época, que apresentam um outro olhar sobre o mesmo tema. O humor também está presente em algumas passagens e descrições que nos aproximam dos grandes e dos pequenos personagens e nos levam à cena - como quando, no Motim do Maneta, em Salvador, os amotinados invadem a casa da pessoa responsável pelos impostos e acham, no segundo andar, um armário fechado. Não conseguem abri-lo e acabam jogando o móvel pela janela, que se espatifa. Para surpresa geral, derrama ouro em pó. “Uma cena de cinema”, brinca Heloisa Starling. 

O cinema brasileiro, aliás, é abordado no livro, e Rio, 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, ganha destaque. “Explodiu o primeiro filme revolucionário do Terceiro Mundo antes da Revolução Cubana”, diria Glauber Rocha à época. A literatura, o teatro e a música também estão lá, com nossos melhores intérpretes e movimentos.

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“Cultura não é reflexo, ela produz um momento e seu contexto”, diz Lilia. “As linguagens da cultura fornecem outros pontos de vista sobre o evento, o personagem e a realidade e apresentam uma dimensão de subjetividade”, completa Heloisa.

Apesar de dizer que as duas autoras têm “uma grande empatia pelo biografado”, Heloisa garante que são muito impiedosas com ele. “Tememos que o biografado fique nervoso.”

Mas esta é uma história ainda em construção, e há avanços. “O País vem se enfrentando. Passamos por um período ditatorial muito mais forte do que dizíamos que passamos. Fizemos uma Constituição cidadã digna de todos. É uma sociedade que construiu um projeto mais democrático e vem batalhando por essa democracia. Sou positiva e acho que essa indignação nas ruas há de gerar cidadãos mais conscientes, ativos e atentos ao cumprimento da lei”, comenta Lilia. “Mas a República tem que aparecer. Nos valores públicos, nossa herança é perversa. A vocação é de se reinventar e o Brasil é bom de reinvenção”, completa.

DEBATE

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Sesc Consolação. Rua Dr. Vila Nova, 245. 3ª (12), 19 h. Com as autoras e o historiador Boris Fausto

BRASIL: UMA BIOGRAFIA

Autoras: Lilia Schwarcz e Heloisa Starling

Editora: Companhia das Letras (792 págs.; R$ 59,90; 39,90 o e-book)

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Trechos

De tanto misturar cores e costumes, fizemos da mestiçagem uma espécie de representação nacional. De um lado, a mistura se consolidou a partir de práticas violentas, da entrada forçada de povos, culturas e experiências na realidade nacional. Diferente da ideia de harmonia, por aqui a mistura foi matéria do arbítrio. Ela é resultado da compra de africanos, que vieram para cá obrigados e em número muito superior ao dos que foram levados a outras localidades. O Brasil recebeu 40% dos africanos que compulsoriamente deixaram seu continente para trabalhar nas colônias agrícolas da América portuguesa, sob regime de escravidão, num total de cerca de 3,8 milhões de imigrantes.3 Hoje, com 60% de sua população composta de pardos e negros, o Brasil pode ser considerado o segundo mais populoso país africano, depois da Nigéria. Além do mais, e a despeito dos números controversos, estima-se que em 1500 a população nativa girasse em torno de 1 milhão a 8 milhões, e que o “encontro” com os europeus teria dizimado entre 25% e 95%.4 De outro lado, no entanto, é inegável que essa mesma mescla, sem igual, gerou uma sociedade definida por uniões, ritmos, artes, esportes, aromas, culinárias e literaturas mistas. Talvez por isso a alma do Brasil seja crivada de cores. Nossos vários rostos, nossas diferenciadas feições, nossas muitas maneiras de pensar e sentir o país comprovam a mescla profunda que deu origem a novas culturas, porque híbridas de tantas experiências.

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"Ao relatar a viagem que empreendeu ao Rio de Janeiro em companhia de Tiradentes, o capitão José de Souza Coelho, vereador da Câmara da vila de Pitangui, anotou ser ele “senhor de variadas aptidões: um tanto cirurgião e tira-dentes, entendedor de ervas para curar chagas e febres, perito em calçadas, pontes, moinhos e encanamentos, além de conhecer, como a palma da mão, aquelas grotas e serras e bem assim distinguir pelos respectivos nomes e apelidos todos os seus habitantes”.

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Em Vila Rica, ninguém acreditou: advogado de grande prestígio na capitania, Cláudio Manuel da Costa teria sido assassinado a mando de Barbacena pelo muito que sabia sobre os membros da elite econômica envolvidos na Conjuração, e sobre os grupos de interesse ligados à atividade do contrabando que incluíam o governador e seu círculo íntimo. Até os nossos dias a morte de Cláudio Manuel continua suspeita e provoca debate: não há acordo entre os historiadores. Nem entre os escritores. Mais de duzentos anos depois, o romancista Silviano Santiago, em seu belo livro Em liberdade, cujo argumento é construído em torno da constante tensão entre história e ficção, sublinhou a importância de manter acesa a desconfiança acerca da primeira versão oficial de morte por suicídio de preso político: “Que força é esta dentro de mim que não pode admitir que Cláudio tenha se suicidado na Casa dos Contos?”

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Entre o recebimento do ultimato de Napoleão e o embarque da corte, os dias passaram ligeiros e decisões importantes foram tomadas secretamente, tanto que nos relatos há contradições sobre datas e nomes. De toda forma, começava nesse contexto um momento definidor para a história de Portugal e do Brasil. Monarquias se movem pouco e, quando o fazem, levam malas pesadas. Não seria diferente com d. João, que vivia isolado em seu palácio, rodeado por sua biblioteca milenar, mantida pela ação dos religiosos e com a ajuda de morcegos, os quais comiam os milhares de insetos. No fundo, o príncipe sabia o tamanho da tarefa: não só transportar a família real, como transladar instituições e a própria corte imperial.

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Nas praias e cais do Tejo, até Belém, espalhavam-se pacotes, caixas e baús largados na última hora. No meio da bagunça e por descuido, toda a prataria da igreja Patriarcal, trazida por catorze carros, ficou na beira do rio, e só alguns dias depois voltou para a igreja. Também caixotes contendo livros da rica Real Biblioteca foram deixados para trás, no chão, para indignação dos livreiros, que lançavam impropérios diante de tamanho pouco-caso.58 Esqueceram-se carros de luxo, muitos sem terem sido descarregados. Houve até quem embarcasse sem mala, apenas com a roupa do corpo.59 O marquês de Vagos percebeu tarde demais que as carruagens e arreios da casa real tinham permanecido em terra firme, e do convés do navio expediu aviso “em linguagem rude”: que fretassem um “iate” para transportar todo aquele equipamento para o Brasil.60 O tom geral era de nervosismo e destempero.

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Paradoxalmente, a chegada da família real e a concomitante abertura dos portos, em lugar de restringir o tráfico, acabaram por elevá-lo a níveis ainda mais altos.61 O número de africanos era tão expressivo, e preocupante na visão das elites, que se empreenderam políticas em “prol da povoação branca”. Dos Açores vieram casais de ilhéus que recebiam mesadas, moradias, ferramentas, carros de boi e tudo mais que fosse necessário.

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O mecenato de d. Pedro II conheceu, ainda, outras facetas. É famosa a admiração do monarca pela ópera e a sugestão que fez a Wagner, em 1857, encomendando-lhe uma obra lírica para o Rio de Janeiro. O pedido foi gentilmente declinado, mas, em 1876, quando d. Pedro II assistia, ao lado do imperador da Alemanha e de outros soberanos alemães, à tetralogia de Wagner, encenada em Bayreuth, autodenominou-se “um wagneriano histórico”, e não de primeira hora como os demais. Em 1857, ele criava a Imperial Academia de Música e Ópera Nacional, destinada a formar músicos nacionais e difundir o canto lírico. O imperador interessava-se, igualmente, pela medicina, financiando pesquisas de profissionais

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O palanque desses comícios reunia as principais lideranças da frente suprapartidária - Ulysses Guimarães, Leonel Brizola, Lula, Tancredo Neves, Fernando Henrique Cardoso, Franco Montoro -, e os discursos eram acompanhados por uma multidão eufórica e comovida. Por outro lado, o engajamento de intelectuais do porte de Antonio Candido, Lygia Fagundes Telles e Celso Furtado, de jogadores de futebol como Sócrates e Reinaldo, e de artistas como Chico Buarque, Maria Bethânia, Paulinho da Viola, Juca de Oliveira, Fernanda Montenegro e Fafá de Belém foi decisivo para difundir as representações e os ideais de um projeto democrático. A campanha era tão grandiosa que acendeu na população a esperança de vitória. Mas, se o governo dos militares havia se desgastado, sua base de apoio político ainda não se desagregara, e as Forças Armadas estavam dispostas a agir para evitar o rompimento das regras do jogo sucessório.

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