Mais velho entre três irmãos, o historiador e memorialista Boris Fausto sempre chamou de “prateleira” o que confiava ser a sequência natural da vida, ou seja, que ele seria o primeiro a morrer. Mas não foi o que aconteceu - em 2012, seu irmão caçula, o médico Nelson Fausto, morreu vítima de um câncer. Oito anos depois, foi a vez do filósofo Ruy. Antes, em 2010, Boris já havia perdido a mulher, Cynira, com quem ficou 49 anos casado.
“Quando Cynira morreu, eu me arrisquei a escrever em situação de luto e o resultado, o livro O Brilho do Bronze (publicado pela Cosac Naify em 2014), foi fruto de uma situação de alívio”, comenta ele ao Estadão, em conversa telefônica. Com a despedida de Ruy, em 2020, e também com avassaladora mortandade provocada pela pandemia da covid-19, Boris se viu novamente em situação de luto. “Foi uma experiência única, pois estivemos rodeados pela morte e agarrados à vida. Nunca vi algo tão dramático e triste em meus 90 anos de vida, não se compara nem a uma guerra.”
Foi durante esse momento tão peculiar na trajetória da humanidade que Boris escreveu Vida, Morte e Outros Detalhes, lançado pela Companhia das Letras. O ponto de partida foi a morte fulminante de Ruy, que morava em Paris. “Comecei a escrever para preencher meu tempo com algo que me interessava - no começo, eram escritos esparsos, mas depois acreditei que havia interesse na vida fraterna (e também marcada por rusgas) que tive com meu irmão.”
De fato, o livro recupera as lembranças que os dois irmãos começaram a compartilhar a partir de 2018, quando uma troca de e-mails fomentou diálogos, frases soltas, situações lembradas da infância e da adolescência. “Essa comunicação foi muito mais que uma brincadeira, pois criamos um jogo de montar nossa memória, em que cada um entrava com uma peça preciosa”, comenta Boris que, com a morte do irmão, escreveu o texto Marketing Macabro, que consta no novo livro e no qual o escritor conta como deixou desorientada uma moça que tentava vender por telefone um seguro por morte. Era março do ano passado, quando a quarentena ainda não estava decretada, mas o vírus da covid já estava à espreita dos brasileiros.
Relações
“A partir daquele momento, senti a necessidade de escrever algo sobre a morte de Ruy e nossas relações familiares”, conta Boris, que dividiu o livro em três partes. A primeira, A Tribo, é justamente alimentada pelas lembranças trocadas com o irmão, o que resultou em delicioso passeio pela São Paulo dos anos 1930, cidade pacata onde um dos principais desafios do pequeno Boris era conseguir entrar no cinema para assistir a sessões proibidas para menores como ele.
A segunda parte, Vida, forma com a terceira, Morte e Imortalidade, uma coleção de textos ora curtos ora mais extensos que, como flashes, trazem recordações de momentos engraçados e tragicômicos, apresentando ao leitor personagens adoráveis, como a tia Rebecca e suas soluções (quase) infalíveis, ou histórias impagáveis, como a procura pelas chaves perdidas do querido tio Paisico.
Com uma escrita direta, precisa e também poética, Boris apresenta São Paulo com o mesmo amor e nostalgia com que o diretor italiano Federico Fellini retratou sua Rimini natal no filme Amarcord. E, tal qual o cineasta, ele é implacável na crítica a péssimos governantes.
“A pandemia foi conduzida pela governança do Brasil de maneira insólita - para se dizer o mínimo”, comenta ele ao Estadão. “Isso agravou uma situação que já era gravíssima e aumentou a sensação de desconforto geral.” Em diversos textos do livro, Boris utiliza fatos pessoais para criticar o presidente Jair Bolsonaro. Quando se lamenta sobre os bons momentos que sua mulher e seus irmãos não puderam presenciar por estarem mortos, ele também se consola por eles não terem visto “o Capitão no governo, as queimadas, a mudança climática em ritmo acelerado, o mundo plano, os indígenas perseguidos, a cultura sucateada, a irresponsabilidade criminosa diante da epidemia”.
Tática
Ao completar 91 anos em 8 de dezembro, Boris Fausto conta que mudou a tática para acompanhar a passagem do tempo - se antes colocava como meta sempre somar mais cinco anos àquele que acabara de completar, agora adotou outro plano, mais ambicioso, apesar de incerto: fixar um dia, no começo de outubro de 2022, quando um candidato de oposição derrotaria o capitão Bolsonaro. “Eu seria invadido por uma alegria imensa, e faria a passagem bem feliz”, comenta.
Leia um trecho do livro Vida, Morte e Outros Detalhes
O isolamento forçado pelo vírus levou muita gente que se dispõe a escrever a uma atitude básica; ou seja, como se tem dito, ocorreu uma volta sobre si mesmo, uma derrubada de barreiras psicológicas e racionalizações enganosas. Não por acaso, acentuou-se uma tendência anterior à pandemia no sentido de se escrever textos intimistas com menos reticências, por vezes sob a forma autobiográfica.
Ao mesmo tempo, a questão sem resposta da vida e da morte tornou-se central. De um lado, o falecimento de gente famosa, supostamente inviolável, ou de parentes e amigos deu à morte um caráter de proximidade apavorante. De outro, ocorreu sua banalização, quando milhares de vidas bem ou mal vividas se transformaram em números frios. Creio que, para escrevinhadores jovens, essa presença constante da morte resultou no fim da ilusão da imortalidade. Para os da quarta idade como eu, a distância até o fim da viagem se tornou ainda mais curta e nitidamente inexorável.
À medida que escrevia os primeiros textos, percebi que a escrita cumpria também uma função importante: ela me ajudava a preencher o tempo indefinido do confinamento à minha frente. Somava-se, assim, às numerosas leituras, séries televisivas, jogos de futebol, com que me distraía.
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