A escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís anota, em meio a uma viagem pela Amazônia: “Eu propus-me a escrever um livro carinhoso e breve que traçasse o desenho dos meus passos pelo Brasil”. O plano fracassa, como ela diz na sequência: “Mas este país é tão grandioso e cheio de encostas para vencer (umas botânicas, outras religiosas, outras históricas), que não me entendo com poucas palavras” (pág. 66). De fato, o que se lê nas páginas de seu Breviário do Brasil, escrito em 1989, quando a autora tinha 72 anos, é o resultado de uma série de impressões registradas ao longo de uma viagem pelo País, patrocinada pelo Centro Nacional de Cultura, de Portugal. Dado o caráter diplomático da visita, a comitiva era sempre recebida com pompa por autoridades locais, o que conferiu uma marca de solenidade ao périplo da portuguesa.
Quem refizer hoje o percurso, quase 30 anos depois, através da bela edição de capa dura da editora Tinta da China, logo vai perguntar-se que país é este que Agustina visita. O Brasil da transição democrática, governado por José Sarney? Aquele país que ouvia nas rádios os versos de Renato Russo: “Nas favelas, no Senado / Sujeira pra todo lado / Ninguém respeita a Constituição / Mas todos acreditam no futuro da Nação”? Aparentemente, não. O Brasil que se descortina diante dos olhos de Bessa-Luís é revelado ao leitor com muita sutileza, através, principalmente, das referências da literatura brasileira - que ela conhece bastante bem - e da história, sempre compreendida por ela como uma extensão da lusitana.
Ao chegar ao Estado natal do então presidente da República, por exemplo, fala das impressões de um jantar com a intelectualidade local: “Mas o Maranhão não se deixa depressa. É um Estado com caráter próprio, e a capital é ainda de sentimento europeu, esnobe e culta, com um pendor liberal bebido nos intelectuais das Luzes” (pág. 42). Linhas adiante, ao se debruçar sobre a situação socioeconômica local, com contenção e decoro, afirma: “O peso da era latifundiária e escravocrata, com a profunda ligação que se opera no desnível das fortunas (...) não se apaga facilmente”.
Como ocorre nos livros do gênero, as impressões de Bessa-Luís são parciais, chegando a incorrer em indesejáveis exotismos: “A Sé de Belém tem essa atmosfera profana e com um visgo libidinoso que acerta bem na área tropical”. Mais adiante: “Só o favelado sabe fazer feijoada, ou a negra garbosa dos seus quitutes” (pág. 45). O interessante é que isso ocorre mesmo que, deliberadamente, a autora tente evitar os exotismos de toda ordem: ela tem consciência de que, dado o caráter diplomático de sua viagem, não terá acesso ao Brasil que desejaria ver. Ao deixar a Amazônia, lamenta: “Não há vestígio dos Parintins, nem dos amansadores nem dos outros; não vimos arpoar tamacuarés, os lagartos dos igapós, nem pescar os grandes peixes das águas escuras. Foi-nos vedada outra coisa senão comprar colares feitos de escama cascuda” (pág. 70).
À escritora que reconhece em Raduan Nassar “um dos seus escritores preferidos do Brasil” (pág. 76) resta o consolo do turismo e do protocolo. Assim é quando conhece o presidente e recusa, para si mesma, qualquer intimidade com ele e, de quebra, ainda critica a tendência lusitana ao afeto fora de lugar: “O presidente José Sarney nos recebe no Itamaraty. É completamente óbvio que não estamos ali como indivíduos, mas como grupo proposto por uma formalidade. Daí que eu tome uma atitude cerimoniosa, pois de cerimônia se trata. Um cargo não é um amigo nem o pretende ser. Essa democracia galhofeira e artesanal julga que abolir distinções é criar rasgos de comportamento” (pág. 75).
Outro tópico singular é o que se refere à nossa herança colonial. Queixa-se a autora, ainda no Nordeste: “Nalgumas livrarias de província chegam a explicar a falta de livros porque nós, os portugueses, nunca favorecemos a cultura senão com obras de ostentação e opulência pessoal. As coisas, ditas assim, incomodam; e ditas doutra maneira também” (pág. 50). Ecoa, nas palavras do livreiro provinciano, a hipótese de Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, de que o colonizador português se assemelha ao semeador, que deita à terra umas quantas sementes, para ver se alguma vinga, em oposição ao espanhol - o ladrilhador - que planeja e executa nas terras conquistadas uma extensão de seu reino. Tal como no exemplo do Maranhão, é o passado colonial que parece estar presente, todo o tempo, a cada linha escrita. Mas, enfim, o que prevalece na visão da autora é paternalismo: “Somos como o pai velho que repartiu a herança em vida e a quem os filhos cospem na cara” (pág. 50).
Uma palavra que pode definir a experiência e a escritura de Agustina Bessa-Luís nas terras brasileiras é ‘resistência’. Há algo da experiência com as cidades, costumes e pessoas brasileiras que se nega à compreensão da escritora. Ao mesmo tempo, seu afeto pela literatura e paisagens locais fazem com que ela insista. A mediação do fato histórico da colonização surge, é certo, como complicador, a criar desentendimentos, estereótipos, hipóteses precárias, tentativas de justificativa, enfim, a mostrar que não há nada de simples numa aproximação à diferença cultural fundante. Ler o Breviário do Brasil é uma oportunidade ao leitor de refletir sobre a condição de brasileiro, e tentar, ainda outra vez, ultrapassar nossa própria escama cascuda.
* WILSON ALVES-BEZERRA É ESCRITOR E PROFESSOR DE LITERATURA HISPANO-AMERICANA DA UFSCAR
BREVIÁRIO DO BRASIL Autora: Agustina Bessa-LuísOrganização: Luis Abel Ferreira e Manuel Vieira da CruzEditora: Tinta da China (280 págs.,R$ 79)
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