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Carla Madeira: ‘A sexualidade está no começo de tudo. Quando você controla o corpo, controla mentes’

Atração da Flip 2024, a autora de ‘Tudo é Rio’ rebate comentários negativos, critica o que chamam de ‘questões de mulheres’ e fala sobre escrita, sucesso e a relação com os filhos. Ela também comenta as adaptações de seus livros para as telas e dá pistas sobre seu próximo romance

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Foto do author Julia Queiroz
Atualização:

Carla Madeira entrava na tenda principal da Flip 2024, a Festa Literária Internacional de Paraty, quando foi abordada por uma jovem que chorava, emocionada por tê-la conhecido. Não é uma situação isolada. Muitas das pessoas mais novas que cruzam com a mineira de 59 anos - a escritora de ficção nacional mais vendida no Brasil em 2023 - choram, a abraçam, alguns até pedem autógrafos que, depois, viram tatuagens.

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Essa intensidade não a assusta. Pelo contrário. “Eu me emociono”, afirma Carla, com um sorriso, à reportagem do Estadão, que ela recebeu na pousada onde está hospedada em Paraty. Ela fala na Flip neste domingo, 13, às 10h, na mesa Invenção e linguagem: o romance segue, ao lado de Silvana Tavano, autora de Ressuscitar Mamutes (Autêntica Contemporânea), e Mariana Salomão Carrara, do premiado Não Fossem as Sílabas do Sábado (Todavia). O debate será transmitido (e fica gravado) no canal do YouTube da festa.

Não dá para dizer que a reação descrita acima é comum para todos os autores da programação da Flip, um evento que atrai mais adultos do que estudantes, por exemplo. Mas Carla ultrapassa isso: é lida por mulheres e homens de diferentes idades (elas parecem ser a maioria, mas a autora diz que eles também a abordam com frequência para comentar a leitura). Seus romances são discutidos em mesas de bar e em clubes do livro. As pessoas que a param na rua ou a procuram em eventos são diversas, diz ela, e as reações, mais contidas ou eufóricas, variam. “Os jovens têm uma coisa da paixão mesmo”, pondera.

A escritora mineira Carla Madeira em pousada em Paraty (RJ), durante a 22ª Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). Foto: Julia Queiroz/Estadão

Carla estudou Matemática, Jornalismo e Publicidade e é dona de uma agência de comunicação consolidada em Belo Horizonte, onde nasceu. Publicou seu primeiro livro, Tudo é Rio, há dez anos pela Quixote, editora mineira independente. Foi um grande sucesso local, e virou fenômeno nacional quando foi reeditado pela Record. Com com a distribuição feita pelo maior grupo editorial brasileiro, alcançou os mais diferentes lugares. Há três anos ele é best-seller, e seu sucesso impulsionou a venda de outros dois títulos da autora: A Natureza da Mordida (2018) e Véspera (2021). Juntos, eles já venderam mais de 900 mil exemplares no Brasil, segundo a editora.

O título de “best-seller” costuma vir atrelado a dúvidas sobre a qualidade literária dos livros. A escritora diz que isso é uma forma de preconceito: “Nós achamos que, se muita gente está lendo, então tem pessoas menos inteligentes do que nós que também estão lendo. É um medo de gostar do que todo mundo gosta, porque eu estou me igualando por baixo. Isso é de uma arrogância e de uma cafonice sem tamanho. Temos que ficar feliz quando as pessoas estão lendo.”

Ela completa: “Existem obras que se popularizam num lugar que é diferente do que eu gosto? Sim. Tudo bem. É um outro tipo de literatura, mas, no caso da minha obra, é interessante notar isso: a quantidade de pessoas que lê tem uma ressonância num lugar muito diferente de uma obra infantojuvenil, uma obra que é meio superficial. Os meus livros não têm nada de superficial. Os meus livros vão muito profundamente em várias questões humanas.”

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Carla acredita que seus livros, em especial Tudo é Rio, têm um pouco de tudo, algo para todos - “o sagrado e o profano, a brutalidade e a violência, a delicadeza e a sexualidade mediada pelo amor”. Diz que é o “não maniqueísmo”, ou seja, a ideia de não existe só o bem e o mal, que faz o livro ser mais aberto e chegar a diferentes públicos.

“As pessoas lerem uma história onde há desencontros, situações de brutalidade, de violência, onde estão ali escancaradas as nossas potências de bem e de mal. Isso as coloca quase que num certo alívio de poder pensar a própria vida. Às vezes, as pessoas atravessam coisas difíceis e a literatura ajuda a entender que isso é do humano e não só da história daquela pessoa”, afirma.

Tudo é Rio explora amor e perdão ao acompanhar o casal Dalva e Venâncio, cuja vida é transformada por um evento trágico, e a prostituta Lucy, que acaba tendo sua vida ligada à deles. Em A Natureza da Mordida, Carla se debruça sobre a amizade e a complexidade das relações a partir das memórias da psicanalista aposentada Biá e da jovem jornalista Olívia. Véspera, por sua vez, tem como protagonista Vedina, mulher que, sobrecarregado e infeliz com o casamento, abandona o filho de cinco anos na rua, evento que marca o relacionamento de toda esta família para sempre.

Tudo é Rio, assim como Véspera e A Natureza da Mordida, ganhará uma adaptação para as telas (o primeiro será um filme, e os outros serão séries). “Estou fazendo um trabalho diário para entender que é outra obra”, diz a escritora, que escolheu se colocar à disposição como consultora dos projetos. “Especialmente em Véspera, tenho ajudado a pensar algumas questões e soluções, mas com muita clareza de que é outro suporte.”

O novo livro de Carla Madeira

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Enquanto essas três obras vão se transformando em produtos para o audiovisual, o próximo livro de Carla Cadeira já está encaminhado. Ela confirmou que está escrevendo a fase final da primeira versão do romance - isso significa que ele precisa ser finalizado, enviado à editora e passar por revisões e novas versões antes de estar pronto. “As pessoas me perguntavam tanto: ‘como que vai ser escrever o próximo livro depois do sucesso dos três? Você fica preocupada? Você fica com medo?’ Olha, não estou preocupada, não estou pensando nisso, não estou abrindo mão de fazer nada que eu quero no livro, estou experimentando a linguagem”, afirma.

Na quinta, 10, em uma mesa na Casa Record, na Flip, ela comentou a produção da obra. Carla dividia o debate com Elayne Beata, escritora de 27 anos e autora do best-seller O Amor Não é Óbvio. Elayne falava de sua experiência como escritora lésbica quando Carla revelou que seu próximo romance poderia ter uma personagem feminina que “beija mulheres”.

Ao Estadão, Carla dá um passo atrás e diz que “tudo pode mudar”. “Essa é uma ideia neste momento, mas eu acho que está meio em suspenso. Não quer dizer que vai acontecer. Acho meio precipitado [falar sobre isso]”, afirmou.

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Revelou, no entanto, outros detalhes: “É uma história que parte de uma coisa que eu acho que está presente em todos os meus livros, que são histórias que têm famílias. O grande acontecimento é nas relações familiares.”

Carla Madeira durante entrevista ao Estadão em pousada em Paraty, na Flip 2024. Foto: Rafael Sento-Sé/Editora Record

Ela está no momento “de começar a ter uma imersão mais pesada” no livro. Isso significa diminuir o ritmo nos eventos - na agência ela já diminuiu e tem, hoje, um papel mais estratégico - para focar na escrita com maior dedicação. “Já estou bem lá na frente [no livro]. Vou criando um acontecimento, um desdobramento, e agora chegou num momento que eu preciso resolver. E aí, entro na fase que eu mais gosto: revisitar esse texto e tratar a textura dele”, explica.

A escritora disse, na mesa na Casa Record, que a possibilidade de uma personagem feminina que se relaciona com mulheres surgiu por conta de sua relação com sua filha, de 24 anos, que se assumiu lésbica. Na ocasião, disse que levou bem a notícia, e só se preocupou com a segurança da filha. Questionada sobre a sua troca com os filhos (ela também tem um menino, de 20), contou que só deixou a filha ler Tudo é Rio quando ela completou 17 anos. “Ela leu e ficou muito impactada. Agora, lê meus livros antes de eu publicar. Ela me dá retornos do tipo: ‘Mãe, de onde você tira isso?’”

Com o filho, foi diferente: “Ele nunca tinha lido. No início deste ano, acho que a ressonância dos leitores chegou no grupo dele. Os amigos falavam ‘pô, o livro da sua mãe’. E aí, ele decidiu ler. Foi interessante. Ele já leu Tudo é Rio e Véspera; não leu A Natureza ainda. Com Tudo é Rio, eu brinquei: ‘você gostou? Tem uma parte erótica forte’. Ele olhou para mim e disse: ‘é, mãe, por isso que é meio estranho’. Ver a mãe escrever uma coisa tão erótica foi uma certa perturbação [ela ri ao dizer isso]. Depois, ele leu Véspera e gostou mais. Foi bem legal também.”

O erotismo é uma característica das obras de Carla. Ela acha que o tema devia ser tratado com mais naturalidade e se diz “espantada” com o tabu em torno da sexualidade, “essa falta de naturalidade pra inclui-la como uma coisa que faz parte da nossa condição humana, animal e biológica”.

Para ela, corpo e a mente estão profundamente ligados e interessa incluir essa dimensão nos seus personagens. “A sexualidade está no começo de tudo. Sempre acho estranho que tenhamos criado esse controle, porque quando você controla o corpo, você controla as mentes.”

A sexualidade está no começo de tudo. Sempre acho estranho que tenhamos criado esse controle, porque quando você controla o corpo, você controla as mentes.

Carla Madeira

‘Mulheres estão escrevendo e ponto’

Em um ano em que a programação da Flip tem mais mulheres do que homens, Carla não reduz essa crescente à literatura. “Acho que isso é parte de um processo de ampliação de consciência que é real e irreversível. As mulheres estão se colocando no direito de fazer o que elas quiserem, de estarem em todos os lugares”, diz, acrescentando que as editoras estão atentas a isso e dando mais espaço ao trabalho dessas mulheres.

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Esta é a primeira vez que a autora do best-seller 'Tudo é Rio' participa como convidada da Flip Foto: Julia Queiroz/Estadão

Ainda assim, ela acredita, existe um reducionismo nesse movimento: “Existem muitas questões hoje que estão na pauta como ‘questões de mulheres’ e que não deveriam estar na pauta como ‘questões de mulheres‘ porque são questões de todo mundo. Filho é questão de mulher? Por quê? Violência de gênero é assunto só de mulher? Por quê? Não pode ser assim. As mulheres estão escrevendo e ponto.”

Carla Madeira lembra de falas de Clarice Lispector (“Um escritor é uma pessoa que escreve”) e da espanhola Rosa Montero (“Uma mulher escreve um romance protagonizado por uma mulher, todo mundo pensa que se está falando de mulheres. Um homem escreve um protagonista homem, todo mundo acha que ele está falando da espécie humana) antes de acrescentar a sua própria: “Acho sempre difícil escrever sobre alguma coisa que não me afeta. Mas, se me afetar, me sinto autorizada a escrever sobre qualquer coisa que é da condição humana.”

A jornalista viajou a convite do Instituto CCR, patrocinador da Flip

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