No centenário de Fernando Sabino, entenda o legado do autor de frases precisas e talento espantoso

O conterrâneo mineiro Humberto Werneck explica o que Sabino nos deixou: ‘Vai além daquilo que fez baixar ao papel. É também o trato que ele soube dar a seu talento, a sua vitalícia paixão pela literatura’; leia artigo

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Por Humberto Werneck

Tanto tempo depois, fica difícil contar o que significou, em 1956, a chegada do romance O encontro marcado, de Fernando Sabino. Uma novidade, um espanto. Leitores se encantaram com aquele modo veloz e desenfeitado de narrar. Jovens aspirantes à literatura descobriram trilhas, truques. Para uns e outros, nunca mais deixou de ser assim. No romance como na crônica, gênero em que também é mestre, a prosa de Sabino vai sem rugas pelo tempo.

“Há um ritmo interior que chega a ser vertiginoso”, disse Otto Lara Resende ao sintetizar o principal legado de Fernando Sabino: “Agilidade não apenas de estilo, mas da técnica de dizer e de contar, sua montagem e construção. Ele sabe entrar e sair do tema como uma faca.”

Capa do livro 'O encontro marcado', de Fernando Sabino Foto: Editora Record

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Principal legado – mas há mais: o que Sabino nos deixou vai além daquilo que fez baixar ao papel, em frases onde nada sobra ou falta. É exemplar, também, o trato que ele soube dar a seu talento, a sua vitalícia paixão pela literatura.

Começou cedo. Tinha 12 anos quando publicou o conto O misterioso assassinato – curiosamente, numa revista da polícia mineira, Argus, onde um dos irmãos tinha boas relações. A parte ruim da estreia foi um cochilo tipográfico que trocou Sabino por Sobrinho.

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Não parou mais. Sete décadas depois, em maio de 2004, vivendo a fase terminal de um câncer, lá estava ele com livro novo, o romance Os movimentos simulados. Perseverante, não é impossível que só tenha jogado a toalha no último dia, 11 de outubro, véspera de seus 81 anos. Não se esperaria menos de quem foi, na avaliação precisa de Silviano Santiago, “um perseguidor do Santo Graal da Literatura”.

Exemplo de profissional das letras, numa seara em que tantos flutuam ao sabor da inspiração, Sabino se impunha a obrigação de escrever todos os dias, tivesse ou não assunto. Rigoroso e apaixonado, preparou-se para as exigências do ofício. Ficou em 2º lugar em maratona nacional para estudantes, na categoria gramática histórica. Aos 18, sabia o bastante para dar aulas de português. Chegou a pensar em ser gramático. Não surpreende que nos tenha dado um livro divertido e útil como Lugares-comuns.

O escritor Fernando Sabino em 1994 Foto: Carlos Chicarino/Estadão

Organizado como o burocrata que nunca foi, Sabino, temeroso de se repetir, tirava cópia das dedicatórias que escrevia. Orgulhava-se de não precisar de mais que 40 segundos para achar algum papel em seus arquivos. Foi dali que em 1979 ele sacou os originais inconclusos de um romance engavetado nos anos 1940, para de novo incendiar-se pelas estrepolias de Geraldo Viramundo e arrematar em apenas 18 dias o best seller O grande mentecapto. Já bem próximo da morte, retrabalhou outro rascunho de moço, Os movimentos simulados.

Previdente, Sabino a certa altura decidiu botar no ponto o que chamou de sua “obra póstuma antecipada”. Determinou em cartório que após a sua morte não se publicasse uma só linha que não tivesse posto em livro. Passou um pente em volumes várias vezes reeditados, e também na montanha de recortes de jornais e revistas acumulados desde o final dos anos 1930. O resultado, neste caso, foi um catatau, mais de 600 páginas, o delicioso Livro aberto.

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Em 1975, Sabino reuniu em Gente uma seleta de perfis que escrevera como jornalista, atividade intermitente em sua vida a partir dos 16 anos. Turista com olho de repórter, fez o mesmo com os relatos de viagem reunidos em De cabeça para baixo.

O escritor Fernando Sabino em 1994 Foto: Carlos Chicarino/Estadão

É curioso que tanta aplicação, rigor e zelo tenham coexistido num homem estouvado que jamais foi um escritor recluso, desses a que não falta, nas fotografias, uma biblioteca ao fundo. Bem ao contrário, a vida inteira Fernando Sabino foi um fazedor apaixonado de muitas outras coisas. Com isso, aliás, tem a ver o fato de ter sido ele o introdutor entre nós, creditou Silviano Santiago, de um “modo norte-americano” de ser escritor, numa paisagem então dominada por modelos europeus. Pesou também a circunstância de Sabino, mal entrado nos 20 anos, ter vivido uma temporada (1946-48) em Nova York.

Era meninote quando descobriu o jazz. Ganhou intimidade com o piano e a bateria, sobretudo esta, que seguiu fustigando pela vida afora, para desespero dos vizinhos de apartamento. Com igual empenho, foi campeão de natação – detentor, poucos sabem, de um recorde jamais batido, pois ninguém o suplantara quando extinguiram a categoria 400 metros costas. (“Por que você não nada de frente, como todo mundo?”, estranhou uma namorada.).

Sabino foi também cineasta, atividade em que sua contribuição mais preciosa é uma série de documentários sobre autores graúdos como Drummond, Vinicius, João Cabral, Manuel Bandeira, Jorge Amado e Guimarães Rosa.

A partir de 1960, o escritor se inventou editor, ao criar com Rubem Braga a Editora do Autor e, mais adiante, a Sabiá – responsáveis, uma e outra, pela difusão de livros que muito contribuíram para conferir à crônica um status literário até então escassamente reconhecido. Coletâneas de Drummond, Vinicius, Paulo Mendes Campos, além das assinadas por Sabino e pelo Braga, permitiram a professores de português rejuvenescer a literatura brasileira servida dos colégios. A anos-luz de iniciativas fecundas como a coleção Para Gostar de Ler, da Ática, só quem estava lá sabe a revolução que foi.

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