Clarice Lispector é lembrada por suas célebres leitoras nos 40 anos de sua morte

Nélida Piñon, Marina Colasanti, Suzana Amaral, Maria Fernanda Cândido, Yudith Rosenbaum, Nádia Batella Gotlib, Carol Rodrigues, Simone Paulino e Mariana Valente falam sobre a relação com Clarice e com sua obra

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Foto do author Maria Fernanda Rodrigues

Nélida Piñon e Marina Colasanti foram amigas de Clarice Lispector. Suzana Amaral adaptou seu romance mais popular, A Hora da Estrela, para o cinema. Maria Fernanda Cândido estará em A Paixão Segundo G. H., filme de Luiz Fernando Carvalho. Yudith Rosenbaum fez de Clarice, e seus mistérios, seu objeto de estudo. Nádia Battella Gotlib também. A escritora Simone Paulino se diz tão tocada pela autora que até escreveu o livro Como Clarice Lispector Pode Mudar a Sua Vida. Carol Rodrigues é uma escritora da nova geração, leitora de Clarice e que discute seus textos em oficinas que faz com adolescentes. Mariana Valente não conheceu a avó, mas encontrou, com a ajuda dela, um caminho. 

Clarice Lispector. Nascida na Ucrânia em 1920, ela morreu em 9 de dezembro de 1977, no Rio Foto: Acervo Paulo Gurgel Valente

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A convite do Estado, elas falaram de sua relação com Clarice, uma das grandes autoras brasileiras, que morreu há exatos 40 anos – e um dia antes de completar 57 anos. 

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Clarice escreveu romances, contos, crônicas, histórias infantis. A Hora da Estrela, A Paixão Segundo G. H., Laços de Família, Felicidade Clandestina, Perto do Coração Selvagem, A Vida Íntima de Laura... Sua obra segue aberta para muitos leitores, que retomam a leitura em busca de novas respostas, de um maior entendimento de si e do outro.

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‘De escassas palavras fora da intimidade’Nélida Piñon, escritora e amiga Foram 17 anos de amizade diária. Quando não nos víamos, sempre antes das 19 horas – falávamos ao telefone. Embora de origem judaica, a grande autora tinha a intensidade recôndita de um mujik russo, saído de algum romance de Tolstoi. 

Contudo, delicada e emotiva, era de escassas palavras fora da intimidade. Mas, de amplos gestos, surpreendeu-me um dia com um quadro pintado por ela, em minha homenagem, que tinha como tema e título Madeira Feita Cruz, nome do meu segundo romance publicado em 1963. Uma tela de dupla simbologia: o pleito à amizade que só cessou no seu leito de morte, eu retendo-lhe a mão esquerda, e a sua crescente atração pela figura do Cristo, na pintura colgado da cruz, entre os dois ladrões.

Até hoje custa-me falar da amiga Clarice.

Clarice com Nélida Piñon, amiga por 17 anos, e a poeta Marly de Oliveira Foto: Acervo Nélida Piñon

‘Ela foi sempre mais infeliz que feliz’ Marina Colasanti, escritora e amiga Ficou uma ternura enorme por ela. É uma ternura que corre paralela à admiração, mas não se embaralha. Desde os 15 anos, eu a lia na Revista Senhor. Juntava dinheiro de mesada para ler Clarice. Depois, já como jornalista, fui responsável por Clarice no Caderno B do Jornal do Brasil, cuidava dos seus textos, era eu que lhe fazia as comunicações, que a atendia caso ligasse. Quando casei com Affonso (Romano de Sant’Anna), que tinha uma relação literária com ela desde Belo Horizonte, a nossa relação se intensificou. 

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Eu tinha um sentimento de proteção em relação a ela, de querer protegê-la porque ela era muito desamparada. Sofria muito, Clarice. Mesmo quando estava alegre, não estava nunca no mesmo patamar dos outros, na mesma confraria dos outros, havia sempre uma coisa que a impedia de chegar. Um vidro, uma coisa. Ela foi sempre mais infeliz que feliz e me inspirava, eu sendo tão mais jovem que ela, um sentimento de proteção e ternura.

Marina Colasanti e Clarice Lispector em 1963 Foto: Acervo Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant'Anna

Ela até pode parecer o meu alter ego’ Suzana Amaral, cineasta Eu só a conheci literariamente e senti uma identificação de cabeça muito grande com ela, não sei por que. É muito misterioso, não sei explicar. Clarice é uma pessoa estranha, não estranha desconhecida, mas uma pessoa estranha. Ela até pode parecer um pouco o meu alter ego. 

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‘Poucas pessoas foram tão essenciais’ Simone Paulino, editora e escritora De tudo, o que mais me comove é a morte. Era muito cedo. Sempre é. Mas nunca me esqueço da história do momento em que ela vai para o hospital de onde não sairia mais e pede ao motorista do táxi: ‘Faz de conta que estamos indo para Paris’. Eu tenho 45 anos. Faz 40 anos que ela morreu. A rigor, vivi a vida inteira ‘sem ela’. Mas poucas pessoas foram tão presentes, tão essenciais para a minha existência quanto Clarice.

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‘O que me provoca: Não basta olhar se os olhos ainda são meus’ Carol Rodrigues, escritora Acho que grande parte dos mistérios mora nos focos narrativos ousados, e os da Clarice são, geralmente, extrapolados, não apenas no acesso ao outro, mas numa implosão silenciosa da noção de outro. Sempre leio o conto Uma Galinha em oficinas para adolescentes e toda vez acontece uma descoberta diferente desse ser galinha que é o próprio ser, não humano, mas o ser mortal, e volta e meia alguém se espanta: como uma humana sabe tanto do não humano? Clarice é generosa nessa partilha e talvez tenha desconfiado desde muito cedo da humanização enquanto categoria criativa. Enfim, acho que esse é o lado dela que mais me provoca, o de não bastar olhar se os olhos ainda são meus.

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‘Li ‘A Paixão’ aos 29 e não me recuperei’ Maria Fernanda Cândido, atriz Li A Paixão Segundo G.H. quando eu tinha 29 anos. Não me recuperei até hoje. Ainda bem. A constatação de que o agora não para é cruel e libertadora, ao mesmo tempo. Como diria Clarice, o livro me deu uma alegria difícil, mas chama-se alegria.

‘Ela ressignifica o sentido da palavra' Mariana Valente, artista e designer Infelizmente, não conheci minha avó pessoalmente, mas através de seus livros e histórias de família. Minha formação como designer me levou a encontrar na colagem minha linguagem gráfica e subjetiva. Clarice ressignifica o sentido da palavra, e acredito que foi com ela que aprendi a ressignificar imagens.

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‘Sua escrita é perturbadora e tende a nos desestabilizar’ Yudith Rosenbaum, professora de literatura da USP Meu primeiro contato com a autora se deu no final da adolescência, com o conto Amor, de Laços de Família (1960), e o romance A Paixão Segundo G.H. (1964). Fiquei arrebatada e assustada. Desde então, acredito que não se lê Clarice impunemente. Sua escrita é perturbadora e tende a nos desestabilizar. Com uma linguagem insólita, que une substantivos com adjetivos imprevistos (“alegria difícil”, “felicidade insuportável”, “horrível mal estar feliz”), o leitor adentra um universo estranho e revelador. Ela provoca uma espécie de despertar de um sono anestesiado e nos mostra que não somos tão sólidos e seguros como pensamos. Senti nas primeiras leituras que o mundo era mais do que rótulos e papéis, o que violentava meus hábitos e minhas defesas. Por isso mesmo, sua literatura também liberta. Mas é preciso pagar o preço de olhar-se ao espelho. Só pude terminar A PSGH 20 anos depois.

‘A Clarice de ‘A Paixão’ me arrasta para o difícil enfrentamento - do quê?’ Nádia Battella Gotlib, biógrafa de Clarice Das várias Clarices, há uma que me enleva, com delicadeza: a das crônicas, pela variedade de temas, situações, lugares, conversas, viagens, pessoas. 

Há a Clarice que me diverte: a das páginas femininas, pela ironia com que registra a vida doméstica, desmontando padrões de comportamento com ironia fina, por vezes felina. 

Uma outra Clarice me instiga, pela presteza na montagem da narrativa: a dos contos, e aí ela tanto engana – há inquietações escondidas por trás da aparente placidez – quando passeia ora por formas antigas das Mil e Uma Noites, ora por inovações experimentais. 

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E há a Clarice que me comove e que me chama à ação – a do romance A Hora da Estrela – drama do nada ter num mundo regido pelo ter, que gera a difícil questão sobre ter ou não ter o direito de narrar. 

Mas a Clarice que mais me toca – ou me atinge – é a daquele romance curto e denso, A Paixão Segundo G. H., por me arrastar, sem piedade, para o difícil enfrentamento – do quê? Eis a questão que me leva sempre a reler esse romance. Quem sabe um dia descobrirei?

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