Com falas duras contra regimes autoritários e o neoliberalismo, chilena Diamela Eltit vem à Flip

Escritora é inédita no Brasil mas reconhecida e admirada na América Latina e Estados Unidos; dois livros seus serão publicados aqui

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Pouco conhecida e divulgada no Brasil, mas amplamente discutida no Chile e em outros países da América, a escritora chilena Diamela Eltit, de 67 anos, não só terá duas obras publicadas por aqui pela primeira vez, como também vem ao País para participar da 15.ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que ocorre entre 26 e 30 de julho.

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Jamais O Fogo Nunca – romance de 2007 que foi eleito pelo suplemento Babelia, do El País, um dos 25 melhores romances em espanhol dos últimos 25 anos, no ano passado – será publicado no Brasil pela editora Relicário, de Belo Horizonte, com tradução de Julián Fuks, em julho. A e-galáxia publicará A Máquina Pinochet e Outros Ensaios, coletânea de textos críticos, traduzidos por Pedro Meira Monteiro, e organizados por ele e por seu colega em Princeton, Javier Guerrero – a Universidade americana também guarda os arquivos de Eltit, espécie de glória que ela compartilha com F. Scott Fitzgerald, Lewis Carroll, Charles Dickens, Oscar Wilde, Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa e seu compatriota José Donoso, entre outros.

Diamela Eltit começou seu envolvimento com a arte no início dos anos 1980, no Chile sob a ditadura de Pinochet, no Colectivo Acciones de Arte (CADA), grupo do qual participavam também artistas e escritores como Raúl Zurita, Lotty Rosenfeld e Fernando Balcells. De lá para cá, construiu um projeto literário aclamado, muito ligado à resistência ao autoritarismo, ao combate à violência do estado e também à luta feminista. Foram quase duas dezenas de livros, entre romances, ensaios e memórias, e diversos prêmios e bolsas, como a Beca Guggenheim, o Prêmio José Donoso e o Prêmio Rómulo Gallegos – distinções que também foram atribuídas a gente como Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes, Ricardo Piglia, Elena Poniatowska e Beatriz Sarlo.

Diamela Eltit. Crédito: Danisa Retamal Eltit/Divulgação Foto:

Um de seus pontos de vista fundamentais é a relação intrínseca entre o corpo e o social. “O corpo, além de sua biologia e de seus ciclos, é fundamentalmente social, é uma área de mandatos, discursos, escritas, proibições”, diz, por telefone, do Chile. “É uma área de experimentos, especialmente o corpo da mulher, muitas vezes imposto por regras do estado e do mercado.” 

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A relação é explorada em Jamais O Fogo Nunca – romance narrado em primeira pessoa por uma mulher marcada pela luta política no regime militar. O dado biográfico é comum a duas mulheres que ocuparam e ocupam centros de poder na América do Sul nos últimos anos, Michelle Bachelet e Dilma Rousseff. “A personagem do romance é uma sobrevivente da mesma experiência política, mas pertence à multidão anônima, de certo modo mutilada de sua própria história e desajustada ante o embate neoliberal.” Para Eltit, a literatura é um “signo no meio de outros” na luta política.

Eltit classifica o impeachment de Dilma Rousseff, no ano passado, de “uma injusta destituição muito problemática para todo o Continente” – sua obra nunca perdeu de vista as implicações das políticas locais para a América Latina. “Os países latino-americanos não superaram suas estruturas autoritárias porque agora está vigente o autoritarismo do mercado, o império do eu, o individualismo, e a violência da riqueza como o poder máximo que controla, domina, explora e exclui”, analisa. “A democracia, por enquanto, parece uma máscara para sustentar um sistema muito extremo fundamentado na desigualdade e na exploração.” Sua última visita ao Brasil, diz, foi há cerca de 12 anos, para um congresso universitário – com formação na área de letras e ciências humanas, ela já foi professora visitante nas universidades de Columbia, Berkeley, Stanford e atualmente comanda o programa de escrita criativa em espanhol da Universidade de Nova York (NYU). Para ela, a barreira da língua é o abismo mais evidente entre Brasil e Chile, no meio de outros. “Mas creio que acontece entre toda a América Latina, nos países hispânicos também. Sabemos o tempo todo o que é publicado na Espanha, mas pouco sabemos do mercado editorial da Bolívia, do Peru, da Costa Rica.”

O nome de Eltit, praticamente desconhecido no Brasil, é uma aposta da nova curadora da Flip, Joselia Aguiar – o primeiro autor confirmado na festa foi o escritor jamaicano Marlon James. “Autores homens da geração dela, anteriores e posteriores, circulam pelo Brasil, e só agora ela chega. Há vários casos assim, em diversas nacionalidades. Muitas autoras ótimas, premiadas”, comenta a curadora.

A geração anterior a de Eltit protagonizou o boom latino-americano – e embora ela reconheça a grandeza dos escritores, acredita que “foi um movimento muito masculinizado e de um momento que reuniu aspectos que não devem mais se repetir”, e que o mercado editorial da Espanha teve muita influência. A geração posterior viu a celebração internacional de Roberto Bolaño, seu conterrâneo – e desafeto. O caso envolve uma crônica que Bolaño escreveu e publicou sobre um jantar na casa dela e de Jorge Arrate, seu marido, então ministro de estado, considerada descortês e até machista.

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TRECHO DE JAMAIS O FOGO NUNCA

"Estamos jogados na cama, entregues à legitimidade de um descanso que merecemos. Estamos, sim, jogados na noite, compartilhando. Sinto o seu corpo dobrado contra as minhas costas dobradas. Perfeitos. A curva é a forma que melhor nos acomoda porque podemos harmonizar e desfazer nossas diferenças. Minha estatura e a sua, o peso, a distribuição dos ossos, as bocas. O travesseiro sustenta equilibradamente as nossas cabeças, separa as respirações. Tusso. Levanto a cabeça do travesseiro e apoio o cotovelo na cama para tossir tranquila. Incomoda você e até certo ponto lhe preocupa a minha tosse. Sempre. Você se mexe para me mostrar que está ali e que eu me excedi. Mas agora você dorme enquanto eu mantenho ritualmente minha vigília e meu afogamento. Terei que lhe dizer, amanhã, sim, amanhã mesmo, que devo racionar seus cigarros, reduzi-los ao mínimo ou definitivamente deixar de comprá-los. Não temos o bastante. Você apertará as mandíbulas e fechará os olhos quando me escutar, e não vai me responder, eu sei. Permanecerá impávido como se as minhas palavras não tivessem a menor aderência e continuasse ali, íntegro, o maço que compro fielmente para você.

Você gosta, você se importa com isso, você precisa fumar, eu sei, mas você não pode mais, eu não posso, não quero. Não mais. Você pensará, eu sei, em quanto você tem se sustentado nos cigarros que consome sistematicamente. Tem sido assim, mas já não é necessário.

Não.

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Não consigo dormir e, entre os minutos, através dos segundos que não chego a precisar, se intromete uma inquietude absurda mas que se impõe como decisiva, a morte, sim, a morte de Franco. Não consigo lembrar quando Franco morreu. Quando foi, em que ano, em que mês, em que circunstâncias você me disse: Franco morreu, finalmente morreu, jogado como um cachorro. Mas você estava fumando e eu também nesse momento. Você fumava enquanto falava da morte e eu fumava e, enquanto acompanhava seu rosto adolescente, abertamente ressentido e lúcido e de certa forma deslumbrante, apaguei o cigarro entendendo que era o último, que eu nunca mais fumaria, que nunca gostei de aspirar aquela fumaça e engolir a queimação do papel. Sinto o seu cotovelo apoiado na minha costela, penso que ainda tenho costela, e aceito, sim, me entrego ao seu cotovelo e me conformo com a minha costela.

Me viro, ponho minha mão sobre o seu quadril e sacudo você uma e outra vez, rápido, ostensiva. Quando morreu Franco, pergunto, em que ano. Quê?, quê?, você diz. Quando morreu, eu digo, Franco, em que ano. Com um só impulso você se senta na cama, veloz, atravessado por uma fúria muscular que você já não exerce nunca e que me surpreende. Apoia a cabeça na parede, mas volta de imediato a deslizar entre os lençóis e fica de costas para mim.

Quando?, eu pergunto, quando?

Com a respiração agitada demais, você chega à borda da cama, não sei, responde, fique quieta, durma, vire para lá. Um dia específico de um ano específico, mas que não faz parte de uma ordem. Uma cena desprendida, já inarticulada na qual fumávamos concentrados, entregues à nossa primeira célula, enquanto você, precocemente sábio, com a plenitude que as habilidades podem alcançar, sustentava algumas palavras legítimas e consistentes que não se podiam contornar, e nós o olhávamos extasiados – os seus argumentos – quando você explicava a morte de Franco e eu, cativada pelo rigor das suas palavras, apagava o cigarro possuída por um nojo final e observava o papel destroçado contra o filtro, olhava a ponta no cinzeiro e pensava, nunca mais, é o último, acabou, pensava e pensava por que eu tinha fumado tanto naquele ano se não gostava, na verdade, da fumaça. Visualizo o cinzeiro, o cigarro apagado com os filamentos escassos de tabaco desfeitos em seu centro. Eu o tenho. Tenho também a morte de Franco, mas não o ano, nem o mês e muito menos o dia. Me diga, me diga, pergunto. Não comece, não continue, durma, você responde. Mas eu não posso, não sei como dormir se não recupero a parte perdida, se não escapo do buraco nefasto do tempo que preciso atrair. A ponta do cigarro amassada contra o cinzeiro, os meus dedos, a sequência das suas palavras convincentes, jogado como um cachorro, em sua cama, o assassino, ou talvez você tenha dito: o homicida, e meu nojo definitivo ao trago de fumaça, o último. 

(...)"

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