Uma intelectual com a trajetória de Heloisa Teixeira poderia ter chegado aos 80 apenas para colher os louros de sua produção acadêmica e atuação política, que, sem exageros, ajudaram a moldar a crítica cultural e o debate feminista do século passado (e deste) no Brasil.
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Mas a Heloisa da última década demonstrou a mesma vitalidade, curiosidade intelectual e abertura ao novo da mulher que acompanhou e ajudou a interpretar as transformações culturais vividas pelo Brasil e pelas mulheres brasileiras desde os anos 1960, no período da ditadura militar.
Há pouco tempo, depois de mais de 50 anos atendendo pelo sobrenome do ex-marido Luiz Buarque de Hollanda, decidiu que dali em diante preferia assumir o da mãe, Teixeira. Disse em suas últimas entrevistas que a mãe era a voz que faltava na escuta e investigação sobre as mulheres feitas por ela durante décadas.
Além de contestar a regra da mudança de sobrenome, herança de um passado em que as mulheres se tornavam propriedade dos maridos ao casar, o anúncio mostrou a capacidade incansável de Heloisa para refletir sobre si e se colocar em questão, independentemente de idade ou de assento na ABL; uma virada epistemológica que sacudiu as ciências humanas do último século, mas que não por isso é uma qualidade que se encontra facilmente na Academia ainda hoje.

Foi essa capacidade de refletir criticamente sobre seus próprios pontos cegos e limitações que parecem ter feito com que ela conseguisse ampliar seus referenciais e ferramentas teóricas a cada evolução histórica do feminismo, muito contestado (no Brasil e em outros países) por abarcar inicialmente apenas as reivindicações e pontos de vista de mulheres brancas e de classe média, como a própria Heloísa.
Quando leu This Bridge Called My Back, antologia do início dos anos 1980 organizada por Gloria Anzaldúa e Cherríe Monaga, de escrita acessível e que trazia a perspectiva de mulheres negras, latinas, asiáticas, judias e outras, disse ter se dado conta de que “não sabia nada sobre mulheres”.
De Anzaldúa, Heloisa ficou com a lição de existir em um modo de “constante tradução” - em sentido amplo, em sua produção que engloba a teoria literária e os estudos culturais - para entender as mulheres e a sociedade.
Equipada com essa máxima, a organizadora do paradigmático 26 poetas hoje se aproximou nos anos 2010 de uma nova geração de intelectuais e ativistas para produzir um panorama do que se chamou de quarta onda, dando origem ao livro Explosão Feminista, publicado em 2018 pela Companhia das Letras.
“Encontrei nelas, de repente, minhas netas políticas, cheias de vontade e determinação”, escreveu nas primeiras páginas de Feminista, eu?, de 2022, um ensaio brilhante sobre a produção cultural feminina brasileira dos anos 1960 e 1970.
O processo conflituoso de fazer um livro a muitas mãos com essas suas “netas” a levou a rever a missão que poderia ter nessa nova fase do movimento, afirmando com humildade ter exagerado em um primeiro momento no que acreditava ser seu papel. Talvez não fosse mais o de coordenar e organizar os novos debates, mas de sistematizar e registrar o que veio antes, entregando esse legado nas mãos das mulheres de hoje.
Heloisa se voltou então nos últimos anos a um esforço inédito de memória e revisão histórica do feminismo brasileiro, em projetos editoriais abrigados principalmente pela editora carioca Bazar do Tempo.

Passou a organizar e difundir textos fundamentais do pensamento feminista mundial em uma coleção de mesmo nome publicada desde 2019, que se tornou livro de cabeceira de 10 entre 10 pesquisadoras feministas em formação desde então.
Criando sem parar até os 85 anos, a cabeça de Heloísa Teixeira ainda “fervilhava de novos projetos”, alguns dos quais certamente não teve tempo de completar. Heloisa Teixeira morreu nesta sexta, 28, no Rio de Janeiro.
Nesse movimento perpétuo, mostrou que nunca é tarde para mudar na gente mesma aquilo que não reconhecemos mais, para resgatar e se fortalecer com a memória e os aprendizados de mulheres que vieram antes, sem ao mesmo tempo esquecer de se encantar, aprender e inspirar pela iconoclastia de novas gerações.