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Como Abraham Lincoln evitou extremismos e cultivou diálogo que faria inveja nos dias de hoje

No livro ‘Differ We Must’, pesquisador Steve Inskeep traça a evolução do ‘Grande Emancipador’ dos EUA, mostrando como ele aprendeu com os outros e cultivou diálogo numa América dividida do século 17

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Por Alexis Coe

THE WASHINGTON POST - “Que Deus me ajude, que Deus me ajude”, teria dito Abraham Lincoln depois de vencer a eleição mais desigual da história americana. Em 6 de novembro de 1860, Lincoln não conseguiu triunfar em um único estado do Sul. Para ser justo, esteve nas urnas em apenas um deles: Virgínia, onde recebeu 1.887 votos contra 74.481 do vencedor, John Bell. Na data da posse de Lincoln, sete estados já haviam se separado. Outros logo seguiriam o exemplo.

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“Se eu pudesse salvar a União sem libertar nenhum escravo, eu o faria”, escreveu o presidente ao jornalista Horace Greeley em agosto de 1862, pouco mais de um ano após o começo da Guerra Civil – e, naquele momento, ele estava falando sério. Lincoln aceitava a escravatura onde ela existia.

Mas, para os estados do Sul Profundo, qualquer coisa que não fosse expandir a instituição era efetivamente um compromisso com a abolição. Lincoln compreendia muito bem esse dilema. “Ele enxergou um problema social tão vasto que parecia impossível de resolver”, escreve Steve Inskeep, da NPR, em seu novo livro, Differ We Must: How Lincoln Succeeded in a Divided America [algo como “Devemos discordar: como Lincoln teve sucesso em uma América dividida”, em tradução livre, ainda sem edição no Brasil]. “E aos poucos encontrou maneiras de resolvê-lo”.

Duas pessoas se abraçam em frente à estátua do presidente Abraham Lincoln, no Lincoln Memorial, em 2022 Foto: Salwan Georges

Existem mais de 15 mil livros sobre Lincoln e, ainda assim, esta é uma adição bem-vinda. Ao cobrir os debates e conflitos interpessoais que moldaram a carreira política de Lincoln, Inskeep escreve com a distância e a moderação de um biógrafo. Não foi o que fez pelo menos um daqueles com quem o presidente discutiu, Frederick Douglass. Ele considerava o ritmo de Lincoln “preguiçoso” e duvidava que alguém que lesse seu discurso de posse “conseguisse dizer se o senhor Lincoln era a favor da paz ou da guerra”.

E as coisas pioram a partir daí. Douglass, que nasceu na mesma fazenda de Maryland que sua mãe, sua avó e sua bisavó, ficou perplexo quando Lincoln conseguiu pressionar o Congresso para financiar a deportação voluntária de pessoas anteriormente escravizadas para África ou para o Caribe. “Senhor presidente, não é o cavalo inocente que faz o ladrão de cavalos”, escreveu ele.

Os historiadores presidenciais adoram afirmar no início de uma biografia que irão demonstrar alguma evolução notável no final, mas, muitas vezes, essa evolução é imperceptível nas páginas intermediárias. Nas mãos da Inskeep, por outro lado, Lincoln avança como pessoa e como político. Em grande medida, mostra Inskeep, o crescimento do presidente foi produto de sua capacidade de ter paciência ao interagir com as outras pessoas, mesmo quando a conduta ou o caráter delas eram perturbadores.

Ele tinha muita prática. O título do livro vem de uma carta que Lincoln enviou a seu melhor amigo de longa data, Josh Speed, que vinha de uma família de proprietários de escravizados em Kentucky. “Se por isso nós dois precisemos discordar, então devemos discordar”, Lincoln escreveu a Speed em 1855, mas assinou “seu amigo para sempre”. Ele não esperava mudar os Speed nem seus sogros, os Todd, que eram donos de pessoas escravizadas por gerações.

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Capa de 'Differ We Must', de Steve Inskeep 

Em Differ We Must, o 16º presidente tem dezesseis interações difíceis com pessoas que questionam suas políticas e prioridades, cada uma das quais é tema de um capítulo. O Lincoln de Inskeep ainda não é o Grande Emancipador que conhecemos: por meio dessas conversas é que o famoso autodidata de rosto áspero e criado na fronteira descobre como chegar lá.

Ele entendia que as pessoas eram motivadas por interesse próprio, mas delinear esse interesse era uma arte. Lincoln adorava contar histórias e ouvir os outros, fazer perguntas e propor desafios. Não era implicante com os interlocutores e sempre se mostrava compassivo. Nunca fingiu perfeição e não esperava isso dos outros.

E daí se o general George McClellan o chamasse de “idiota” e “gorila original” e passasse direto pelo presidente, que esperava pacientemente em casa? E daí se as opiniões nativistas de Joseph Gillespie fossem repugnantes? Seus seguidores trouxeram votos antiescravidão desesperadamente necessários. Lincoln estava focado nas “lutas que tinha de vencer para não perder tudo”.

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“Lincoln aprendeu, adaptou-se e buscou vantagens ao interagir com pessoas que discordavam dele”, escreve Inskeep. Seu livro apresenta nomes conhecidos, como Douglass – sem mencionar Stephen Douglas, que também tem um papel importante – mas Inskeep faz bem em olhar além deles e do momento crítico ao qual todos tentavam sobreviver.

Por exemplo, quando Inskeep descreve a visita de Lean Bear e um grupo de outros líderes nativos à Casa Branca, em 1863, ele costura as histórias dos tratados que os colonos brancos violaram desde sempre no Ocidente com o Massacre de Sand Creek, que aconteceu no ano seguinte.

Estátua de bronze de Frederick Douglass, na Maryland State House em na cidade Annapolis, EUA Foto: Michael Robinson Chavez

Os capítulos sobre mulheres no final do livro parecem, infelizmente, reflexões posteriores. Ao falar sobre Mary Ellen Wise, uma soldada crossdresser que buscava pagamento atrasado, Inskeep exagera as opiniões de Lincoln sobre as mulheres soldados e o sufrágio. Sua afirmação de que Lincoln demonstrou “sua única prioridade: apoiar as pessoas que apoiaram a guerra” soa falsa. Wise era uma exceção. Embora Lincoln tenha intervindo em seu nome, centenas de soldados crossdressers enfrentaram uma situação pior.

A evidência de que Lincoln “endossou o direito de voto para algumas mulheres” se baseia apenas em um parêntese em um ensaio de 1836 sobre o sufrágio para os proprietários de terras brancos: “(de forma alguma excluindo as mulheres)”. Os primeiros biógrafos pensaram que ele incluíra a observação como brincadeira, já que poucas mulheres possuíam terras. Se a declaração era séria, ele jamais a repetiu.

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O capítulo sobre “Mary Todd Lincoln” é mais frustrante. Mary Lincoln nunca usou “Todd” depois de se casar, e aqueles que insistem nisso estão se curvando às inclinações de William Herndon, sócio do presidente. Herndon odiava Mary Lincoln, provavelmente porque ela rejeitara seus avanços amorosos quando eles eram jovens, o que fez dele um ponto de referência pouco confiável.

Inskeep vai mais longe ao declarar Mary louca, valendo-se de uma acusação por fim desmascarada, difundida por seu filho Robert Lincoln. Também aqui Inskeep faz muito pouco para contextualizar as narrativas que circulavam em torno de Lincoln, deixando o leitor com uma compreensão incompleta.

Steve Inskeep é autor do livro 'Differ We Must' Foto: Mike Morgan

Ainda assim, Douglass oferece paralelos importantes com o presente. Antes da Guerra Civil, a união estava intacta – e só viria a testemunhar transições pacíficas de poder até as eleições de 2020. Em ambos os casos, o futuro da experiência americana dependia de uma ação decisiva, mas a realidade sem precedentes exigia uma abordagem pragmática – uma abertura a opiniões e ideias que inflamam.

A disposição de Lincoln em ouvir pessoas de quem discordava e de quem não gostava atesta sua crença no país, em todas as suas contradições e complexidades. A chave para preservar a democracia em um momento de crise, lembra-nos Inskeep, é eleger um líder que esteja comprometido com algo muito maior do que ele mesmo: a América.

Serviço

Differ We Must: How Lincoln Succeeded in a Divided America

  • Editora: Penguin
  • Autor: Steve Inskeep
  • 331 páginas; R$ 134,06 (em inglês) | Ebook: R$ 83,39

Alexis Coe é o autor de You Never Forget Your First: A Biography of George Washington.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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