Como ‘Adolescência’: Autora explora subcultura incel para escrever ‘Garota Invisível’; leia trecho

Britânica Lisa Jewell investiga misoginia online em suspense sobre desaparecimento de garotas

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Por Daniel Vila Nova

Após o sucesso da série Adolescência, que retrata o assassinato de uma garota de 13 anos cometido por um colega de classe da mesma idade, o termo incel passou a figurar em debates nas redes sociais, na mídia e em conversas entre o público da série da Netflix. A expressão, uma junção das palavras inglesas involuntary celibate, ou celibatário involuntário em português, descreve alguém que se julga incapaz de encontrar um parceiro romântico ou sexual durante a vida.

Ao longo dos anos, o termo passou a ser utilizado por uma subcultura online composta por homens heterossexuais que culpavam as mulheres pelas rejeições ou desinteresse sexual e amoroso sofridos. O comportamento da comunidade machista é tema do livro Garota Invisível (Intrínseca, 2025), escrito pela britânica Lisa Jewell e que será lançado nesta quarta-feira, 2, no Brasil.

Em 'Garota Invisível', a autora Lisa Jewell investiga a comunidade incel em um thriller sobre o desaparecimento de uma garota. Foto: Divulgação/Intrínseca

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Com tradução de Karine Ribeiro, o thriller discute temáticas como assédio sexual, machismo e saúde mental e ainda apresenta uma investigação sobre um crime misterioso repleto de reviravoltas.

Na trama, um pacato bairro na Inglaterra passa a ser o local de uma série de casos de assédios sexuais e estupros. Enquanto os moradores da região procuram por respostas, o pior acontece — a jovem Saffyre desaparece no Dia dos Namorados.

O principal suspeito é Owen, um rapaz de trinta anos que jamais teve relações sexuais. O homem é um incel. Afastado da escola onde trabalhava por conta das suspeitas, Owen encontra em fóruns online a válvula de escape perfeita para todas as acusações que está sofrendo.

Na internet, encontra homens com as mesmas dificuldades sociais do que ele e, pela primeira vez na vida, se sente acolhido. Mais do que isso, no mundo digital aprende que a falta de sexo e afeto em sua vida não é culpa dele, mas sim de outras pessoas — das mulheres. Será, no entanto, que ele é o culpado pelo desaparecimento de Saffyre?

Em trecho publicado pelo Estadão, retirado do décimo quarto capítulo do livro, acompanhamos a primeira visita de Owen ao fórum incel que promete mudar a sua vida. Na passagem, Lisa Jewell nos faz entender como o discurso misógino se torna tão apelativo para homens inseguros e virgens.

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Leia um trecho de ‘Garota Invisível’

Estranhamente, Owen foi uma criança bonita. A mãe o colocara para fazer alguns trabalhos de modelo quando ele tinha mais ou menos quatro anos. Ele ficava sem jeito diante da câmera, então não dera certo, mas seu rosto de fato era como o de um querubim: olhos escuros, lábios vermelhos, covinhas.

Contudo, o rosto, tão lindo em uma criança, não havia se transformado em um rosto bonito na adolescência, e ele fora um rapaz muito estranho. Ainda hoje, Owen não consegue olhar para fotos suas entre os onze e os dezoito anos.

Contudo, agora, aos trinta e três, Owen sente que seus traços se adequaram de novo, ele olha no espelho e vê um homem relativamente bonito. Gosta em especial dos olhos — tão castanhos que chegam a ser quase pretos. Herdados da avó materna, que era metade marroquina.

Owen não malha, é verdade. Seu corpo não é muito definido, mas não dá para perceber quando está vestido, não dá para ver a pele flácida ao redor do umbigo, a ligeira flacidez no peitoral. Quando escolhe bem as roupas, ele se parece com qualquer cara de academia.

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Owen acha que nunca foi rejeitado por não ter um corpo sarado. Isso ele poderia aceitar. Mas nenhuma mulher já o viu sem roupa. Nem uma vez. Nunca. Parece que, por algum motivo, ele não cumpre os pré-requisitos de nenhuma mulher na face da Terra. E mesmo assim, todo dia, vê homens muito mais feios com mulheres que parecem gostar deles, ou com filhos, provando que em algum momento uma mulher gostou deles o bastante para deixá-los fazerem aquilo com elas, ou usando alianças, ou com fotos de mulheres bonitas na mesa, ou fotos de crianças que mulheres bonitas os deixaram fazer nelas, e, de verdade, isso o choca, deixa-o completamente chocado.

Não é como se Owen fosse exigente. Ele não é mesmo. Na verdade, provavelmente diria sim para oitenta por cento das mulheres adultas se elas o convidassem para sair. Talvez até noventa por cento.

No banheiro de Tessie — aquecido por uma barra elétrica de um vermelho que brilha tanto quanto o sol do Saara em cima da porta, e que provavelmente não passaria em uma inspeção de segurança —, há um espelho de corpo inteiro em frente ao vaso sanitário. Owen não faz ideia do que levaria alguém a colocar um espelho de corpo inteiro em frente ao vaso sanitário. Mas lá está, e, com o passar dos anos, ele se acostumou com o objeto. Na maior parte do tempo, ignora-o. Porém às vezes o usa para se avaliar fisicamente. Owen precisa se olhar em intervalos regulares para se ver, porque ninguém mais o vê e, se ele não se lembrar de suas três dimensões, pode ser que se dissolva e desapareça. Ele olha para seu pênis. Tem um pênis bonito. Já assistiu àquele programa de namoro na TV em que uns homens pelados ficam em cabines sendo analisados por mulheres totalmente vestidas, e quase todos os homens que viu tinham pênis feios. Mas o pênis de Owen é bonito. Ele consegue ver isso muito bem. No entanto, mulher nenhuma nunca viu.

Ele suspira, tornando a vestir a cueca e fechando o zíper da calça. Volta para o quarto e para o blog de ProblemaSeu, que descobriu ontem depois de clicar em um link incluído no comentário.

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O site de ProblemaSeu é um portal para um mundo que Owen não sabia que existia.

Ele se descreve como um incel. O termo tem um link no topo do site dele que leva a uma página Wiki, que diz que incels são:

[...] membros de uma subcultura virtual[¹] [²] que se definem como incapazes de encontrar um parceiro romântico ou sexual apesar de desejarem um, um estado que descrevem como inceldom. [³] Pessoas que se autodenominam incels são em sua maioria brancas e quase exclusivamente homens heterossexuais.[⁴] [⁵] [⁶] [⁷] [⁸] [⁹] O termo é uma contração de involuntary celibates, celibatários voluntários.[¹⁰]

ProblemaSeu tem trinta e três anos, como Owen, e fala abertamente sobre o fato de não transar desde que tinha dezessete anos.

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Já Owen, nunca transou.

Uma vez, uma garota o tocou dentro das calças, quando ele tinha mais ou menos dezenove anos. Mas acabou rápido e de um jeito ruim, com a garota tirando a mão depressa e correndo para encontrar uma pia. Foi um dos momentos mais constrangedores da vida dele. Owen o reviveu mentalmente por anos, várias e várias vezes, como se se cortasse com uma faca afiada. Quanto mais pensava no assunto, mais medo tinha de se colocar naquela situação de novo e se culpava desde então pela falta de sexo em sua vida, pelas mulheres que não o olharam nem o tocaram. Até onde sabe, é culpa sua. Porém, enquanto lê o blog de ProblemaSeu, Owen começa a se questionar.

Porque ProblemaSeu não se culpa. ProblemaSeu culpa as outras pessoas e está com raiva pra caramba.

Está com raiva de pessoas que chama de “Chads”. Chads são caras que transam. De acordo com ProblemaSeu, Chads não transam porque são melhores do que caras que não transam. Eles transam porque estão praticando looksmaxxing e mugging. Isso significa que estão bombando o corpo artificialmente para parecerem mais atraentes do que caras normais, estão fazendo bronzeamento artificial, clareamento dentário, cirurgias plásticas e coisas com as sobrancelhas e com a pele. Eles transam porque estão, desonestamente, tornando as coisas difíceis para homens como ProblemaSeu. E, Owen suspeita, como ele também. Parece que esses caras estão trapaceando.

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Mas ProblemaSeu tem raiva principalmente das mulheres. Ele as chama de Stacys e Beckys. Stacys são mulheres muito bonitas, as mulheres-troféu que podem ter os homens que quiserem. Essas mulheres o enojam porque sabem exatamente o que estão fazendo: sabem seu poder e valor e os usam de forma calculada para fazer caras como ProblemaSeu se sentirem imprestáveis. Já Beckys são mulheres não tão bonitas que, mesmo assim, se sentem no direito de rejeitar homens como ProblemaSeu, que consideram não estar à altura delas.

ProblemaSeu caminha muito. Ele caminha, senta-se em bancos e nos cantos menos agitados dos bares, observa e conta o que vê, as injustiças que nota em cada esquina da cidade sem nome na qual mora.

Owen clica em um post chamado “Piada de inverno”.

“Minha cidade está branca hoje. Está nevando. Por um segundo, isso me faz sentir que tudo é possível — está tudo escondido, como se o mundo usasse um uniforme. E todos estão vestindo roupas maiores, mais quentes e menos bonitas, somos iguais agora.

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Só que não, certo? Debaixo da neve, aquele carro ali ainda é uma Mercedes Coupé e aquele carro lá ainda é um Ford Focus e você sabe muito bem, sem nem ter que tirar a neve para ver — lá está aquele brilho de pintura vermelha, aquela curva no para-choque, inconfundível. Então, por mais que estejamos usando nossas piores roupas, ainda é óbvio quem está ganhando e quem está perdendo. Lá está aquela Becky toda tristonha andando na neve com suas botas velhas; ela não sabe que elas não são impermeáveis? Caramba. Não, ela não sabe, porque é burra. E, olha, lá vai uma Stacy andando com um par de galochas de cem libras. Feias pra cacete. Mas pelo menos não deixam a água entrar. E tenho certeza de que tem alguém por aí com fetiche por sapatos de borracha verde... E ela está toda maquiada, lógico, não dá para deixar alguns fractais de gelo te impedirem de fazer o que é necessário. Não dá para ignorar completamente seus padrões assim.

Esta cidade, esta porra de cidade. Cheia de gente falsa. E, se você não é falso, quer ser falso. E, se não quer ser falso, é um perdedor, mesmo quando é um vencedor.

Pra variar, vou ao gastrobar perto do parque.

Só faz algumas semanas que virou um gastrobar. Antes, era só um bar. Ou uma pensão, na verdade. O Hunter’s Inn. Tem lampiões do lado de fora e uma passagem onde os cavalos um dia teriam sido amarrados. Apesar da gentrificação, na neve, com suas lâmpadas brilhantes, ainda parece vagamente dickensiano, e por um momento me sinto atemporal e feliz, como se de alguma forma eu me encaixasse. Antigamente, todo homem conseguia encontrar uma mulher. E, se não conseguisse fazer uma mulher se apaixonar por ele, havia outras maneiras de encontrar mulheres e mantê-las. Naquela época, as mulheres precisavam de nós, mais do que precisamos delas agora. Que porra aconteceu com o mundo?

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Compro uma cerveja. Sento perto da janela. Observo os patos deslizando na lagoa congelada do parque. Observo a neve.

Amanhã vai ter parado de nevar."

Garota Invisível

  • Autor: Lisa Jewell
  • Tradução: Karine Ribeiro
  • Editora: Intrínseca, 384 págs.; R$69,90 | E-book: R$46,90
  • Lançamento: 2/4/2025