Fundada há mais de 100 anos, poderia a psicanálise, criada por Sigmund Freud, oferecer leituras e saídas para uma época de mudanças tão viscerais como a nossa, com outros sintomas, tensões sociais impulsionadas e outra vivência do tempo? Com a trilogia Freud no Século XXI (Autêntica), o psicanalista Gilson Iannini, doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), propõe leituras arejadas de uma obra largamente esmiuçada, mas que ainda reserva novidades, especialmente se houver curiosidade.
O primeiro volume, O Que é Psicanálise?, lançado este ano, reafirma a disponibilidade estrutural dela para desafios clínicos e sociais, desde que se prontifique a escutar as questões e vicissitudes que fazem o século atual tão peculiar. Em diálogo com outros campos, a psicanálise propõe interpretações importantes de inquietações urgentes, como o fascínio humano pela tirania, destaca Iannini em entrevista ao Estadão. Leia a seguir:
A psicanálise costuma receber críticas sobretudo quanto ao método, centrado na fala e na escuta. Freud, um neurologista e cientista, criou um modo de pensar e tratar o sofrimento que considera fundamentais a linguagem e os efeitos dela. O que isso significa?
Não tenho tanta certeza assim de que as críticas à psicanálise gravitem em torno do método centrado na fala e na escuta. Muitas formas de psicoterapia também se valem dessas ferramentas e não incomodam tanto quanto a psicanálise. De um lado, há os missionários do evidencialismo, que consideram que a psicanálise seria uma prática carente de evidências quanto à eficácia e eficiência e preferem recomendar terapias cognitivo-comportamentais, que seriam o “padrão-ouro” no tratamento desse ou aquele “transtorno” ou “distúrbio”. Eu e Christian Dunker, no livro Ciência Pouca é Bobagem, desmontamos esses argumentos um por um. Por outro lado, há outra corrente, mais politizada, que critica a psicanálise por sua abordagem parecer ser “individualista” e supostamente alheia aos determinantes sociopolíticos do sofrimento mental, incluindo aí fatores raciais, de gênero etc. Essa visão é completamente caricata e desconhece o potencial crítico-clínico da psicanálise e de práticas fundamentadas nela. O sujeito da psicanálise nunca foi um indivíduo separado do mundo, nem a prática se resume a atendimentos individuais.
Eu diria que uma das maiores contribuições dela é justamente a de reconhecer como a linguagem afeta e modula nossos modos de sofrer. Psicanalistas sabem que a palavra tem peso, ela deixa marcas na subjetividade. Sabe quando alguém te diz algo e aquilo faz você ferver por dentro ou tremer? Nossos sofrimentos e sintomas costumam estar “cristalizados” em determinados modos de falar e de ser falado. O tratamento psíquico necessariamente passa pela palavra, mesmo que não se reduza a isso.
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É dito também que o tratamento psicanalítico é elitista e indisponível a muitas pessoas. No que essa crítica pode contribuir para um acesso mais amplo à psicanálise no Brasil?
Essa é outra crítica comum, mas que não resiste a dois minutos de pesquisa. Na década de 1920, foram criadas inúmeras clínicas sociais de psicanálise, que experimentaram técnicas inovadoras e ampliaram o acesso a tratamento em diversos países. Foram fechadas com a ascensão do hitlerismo. O Brasil tornou-se um grande laboratório de práticas psicanalíticas gratuitas ou a preço social, mas não é de hoje. Historicamente, a psicanálise se aliou à luta antimanicomial e esteve presente, com maior ou menor força, na formulação e reestruturação das políticas de saúde pública. É claro que houve enormes variações de uma cidade para outra. Mas, de alguns anos para cá, houve uma espécie de boom de clínicas públicas, organizadas muitas vezes em torno de coletivos de jovens psicanalistas. Muitas universidades oferecem serviços de saúde mental com a participação ou a supervisão de psicanalistas.
Hoje há um reconhecimento maior de que a saúde mental precisa de cuidado, mas a validação está muito atrelada aos diagnósticos dados à pessoa que sofre: se é ‘ansiosa’, ‘depressiva’, ‘bipolar’ ou ‘TDAH’, então, ela tem seu sofrimento reconhecido e um tratamento é indicado. Como a psicanálise se posiciona diante deste cenário?
Vivemos uma época que gosta de etiquetar e categorizar. Isso vale não apenas na saúde mental, parece ser um traço da época. Gostamos de nomear cada modo particular de nos orientarmos no sistema sexo-gênero, de categorizar nossas formas de vida, nossas formas de amar e nossos gostos musicais ou preferências alimentares. Assim, cada vez mais inventamos categorias e siglas em todas as dimensões da nossa vida social. Elas vão formando árvores e fluxogramas que se multiplicam vertiginosamente, tentando dar conta de algo que, na verdade, resiste à classificação. Acho que precisamos entender a multiplicação de categorias nosológicas da psiquiatria nesse contexto. A ética da psicanálise é radical em sua aposta na irredutibilidade da singularidade a siglas e nomeações prêt-à-porter.
Um imaginário comum é o do tratamento no divã, mas Freud deixou textos voltados para a discussão da vida em sociedade, como as guerras, a intolerância, a segregação e a tirania. De que maneira a psicanálise pode contribuir para lidar com problemas sociais contemporâneos?
O que seria da teoria crítica sem a psicanálise? Como ler o fenômeno da segregação sem considerar as contribuições de Freud sobre a pulsão de morte ou de Lacan sobre o gozo? Como entender nosso fascínio pela tirania e nossa servidão voluntária a deuses obscuros sem levar em conta a psicanálise? Fenômenos como racismo ou violência de gênero são compreendidos de forma muito mais rica e complexa quando se entrelaçam com conceitos psicanalíticos. As cartas entre Freud e Einstein sobre a guerra são de uma atualidade desconcertante.
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Freud indicou que uma existência é completamente entrelaçada à existência do outro, em uma relação que é simultaneamente individual e social. Nesse sentido, que papel ela tem no reconhecimento e defesa de populações costumeiramente ameaçadas e invalidadas, como é o caso dos diversos grupos minorizados e subalternizados?
Temos trabalhado muito esses temas nos últimos anos, tanto do ponto de vista teórico quanto nas práticas. Uma teoria racial crítica que se valha da psicanálise pode abordar o tema do racismo com teorias mais complexas da formação de identidade, sem cair em armadilhas identitárias. Não vejo como entender a segregação sem levar em consideração uma teoria robusta de como nos tornamos sujeitos e sem considerar o elemento pulsional de nossa subjetividade. Freud já dizia, em 1908, que “constitui uma das evidentes injustiças sociais o fato de o padrão cultural exigir de todas as pessoas o mesmo modo de conduta sexual”. Não por acaso a psicanálise incomodou tanto a sensibilidade puritanista da época. Essa ética radical mostra que a psicanálise sempre deve estar à altura da singularidade de nossas formas de amar, de gozar e de viver nossos corpos sexuados. Há inúmeras pesquisas sobre temas raciais e sexuais em curso, com publicações de qualidade bastante heterogênea, mas que apontam na direção certa. Não sei se todos sabem, mas há quilombos urbanos com forte presença de psicanálise. Há intervenções de psicanalistas em populações ribeirinhas ou com pessoas encarceradas. O que é escandaloso é como esse tipo de pesquisa é amplamente desconhecida.
Qual é a ‘cara’ da psicanálise no século 21 e quais as particularidades da psicanálise brasileira?
Colegas europeus que nos visitam ficam encantados com nossas práticas e nossos coletivos. Conseguimos, na psicanálise, pelo menos parcialmente, inverter o fluxo colonial. Não me preocupo nem um pouco com a ideia de construir uma “psicanálise brasileira”. Solidificar identidades não me parece um caminho fecundo. Ao mesmo tempo, hibridizar a psicanálise me parece igualmente arriscado. Basta nos tornarmos aquilo que já somos, mesmo que não saibamos.
Freud no Século XXI - Volume 1: O Que é Psicanálise?
- Autor: Gilson Iannini
- Editora: Autêntica (344 págs; R$ 79,80; R$ 55,90 o e-book)
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