O tema fascina ensaístas contemporâneos como nenhum outro: a proximidade entre animais e humanos na literatura. Tanto que dois livros sobre o assunto chegam simultaneamente às livrarias, um da escritora e professora mineira Maria Esther Maciel, Literatura e Animalidade, e outro do professor e pesquisador argentino Gabriel Giorgi, Formas Comuns, ambos dedicados ao estudo da zooliteratura – termo que designa obras que se voltam para os animais, não necessariamente numa dimensão alegórica – e a autores que se dedicaram ao gênero, de Gu imarães Rosa a Clarice Lispector, dois entre os muitos escritores analisados nas obras agora lançadas.
A gama de autores que exploraram a fronteira entre o humano e o animal é imensa. Giorgi prefere transitar entre Argentina e Brasil, elegendo escritores como Copi, Cortázar, Manuel Puig e João Gilberto Noll. Seu interesse particular é o aspecto biopolítico das histórias que eles contam. Maria Esther Maciel amplia o repertório e interpreta textos de Borges, Coetzee, Kafka, Graciliano Ramos e Wilson Bueno, recorrendo a filósofos como Jacques Derrida – um dos primeiros a usar o termo zooliteratura – e Michel Foucault. Ela concede especial atenção à “dimensão negativa da animalidade na cultura ocidental”. A despeito do crescimento de pet shops no mundo, a professora mineira, a exemplo de Foucault, desconfia que exista “certa resistência à aceitação positiva dos animais”.
Não por outra razão, um dos autores que Maria Esther Maciel destaca em seu livro é justamente o sul-africano J.M. Coetzee, prêmio Nobel de literatura (em 2003) que aborda em quase todos os seus livros a condição animal e a crueldade com que os humanos estabelecem relações com os bichos, seja em A Vida dos Animais, sobre uma escritora australiana vegetariana, ou, de forma mais abrangente, em Desonra (Disgrace), um grande painel de conflitos entre sexos, raças e gêneros, em que um professor, acusado de assédio a uma aluna, é demitido e se refugia na fazenda da filha. Para sua desgraça, ela será estuprada por uma gangue, a mesma que mata seus cachorros. Numa só história, Coetzee resume os rumos de um país à deriva no pós-apartheid. Onde deveria existir liberdade, sobreveio a barbárie, o desrespeito à vida.
O cão, lembra a escritora mineira, referindo-se a uma análise de Susan McHugh, “é o animal que oferece as conexões mais primárias entre os mundos humano e animal, visto que sua existência é impensável fora dos domínios humanos”. Ela cita como exemplo a cadela Baleia de Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, uma vira-lata meiga que acaba incorporada à família de retirantes – e é por isso “humanizada”. Nega-se à cadela o direito de “interpretar” o mundo em que vive com sua animalidade. O bicho, como diria Giorgi, começa a funcionar como signo político, mais ou menos como a barata de A Paixão Segundo G.H., obra-prima de Clarice Lispector analisada tanto pelo argentino como pela escritora brasileira, assim como Meu Tio o Iauaretê, de Guimarães Rosa.
São curiosas as semelhanças de abordagem. Giorgi, ao analisar o texto de Rosa, sobre um sertanejo caçador, mestiço e pobre, que mata onças e se metamorfoseia numa delas diante de um narrador “civilizado e urbano”, conclui que essa aliança humano-animal retorna “como ameaça à ordem disciplinar e civilizatória da modernidade”. Em outras palavras: trata-se de um embate entre a língua –“oral e menor” – do caçador de onças e o silêncio enigmático do homem culto, que só ouve e vai levar a melhor. Maria Esther Maciel recorre a Derrida e Guattari para falar em “devir animal”, uma vez que não se trata da mudança física do caçador em onça, mas de “um traspassamento de fronteiras”, que leva o homem para “formas híbridas de existência”. Em suma: o onceiro permanece humano, mas em estado de onça, aniquilado em sua humanidade diante do homem urbano que acompanha sua narração.
A barata que invade o apartamento da narradora, uma mulher burguesa em A Paixão Segundo G.H., acaba, porém, tomando o lugar de um humano, Janair, a empregada doméstica que trabalha para a protagonista. Janair, segundo Gabriel Giorgi, é a “estrangeira, a inimiga indiferente”, que é identificada como um inseto invasor nesse jogo de “hierarquias biopolíticas – classe, raça, espécie”. O “povo”, lembra Giorgi, “nunca será humano; foi e continuará sendo o testemunho desse limite, que comparte com o animal”.
Maria Esther Maciel, a respeito desse cruzamento híbrido, evoca o exemplo de A Metamorfose (1915) de Kafka, para ela uma obra precursora da literatura moderna “que problematiza as fronteiras entre humanidade e animalidade”. Gregor Samsa pode ter acordado em seu quarto como barata, mas não perdeu sua humanidade. Foi preciso se reconhecer num inseto para se tornar humano. “É precisamente esse paradoxo que atravessa muitas obras literárias posteriores a Kafla”, conclui.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.