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Como os livros de bolso ajudaram os soldados dos EUA a derrotar os nazistas na 2ª Guerra Mundial

Programa que distribuiu 120 milhões de livros a soldados propiciou não só descanso mental, mas senso de propósito e de nacionalidade, e até estimulou a criação de clássicos. Conheça história de heroísmo editorial

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Por Jennifer Schuessler
Atualização:

NOVA YORK — Quando os soldados americanos guerreavam nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial, levavam mais do que armas. Eles também carregavam ideias – literalmente.

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A Armed Services Editions, uma série de livros de bolso concebida especialmente para a ocasião, foi lançada na primavera de 1943. Nos quatro anos seguintes, foram impressas cerca de 120 milhões de cópias, que chegaram a todos os lugares, desde as praias da Normandia até os campos de prisioneiros alemães e as distantes Ilhas do Pacífico.

O programa, um dos capítulos mais heroicos da história editorial americana, é tema de The Best-Read Army in the World [algo como “O exército mais lido do mundo”, em tradução livre], uma exposição no Grolier Club, em Manhattan. A mostra, em exibição até 30 de dezembro, tem curadoria de Molly Guptill Manning, professora de direito que acumulou mais de 900 volumes enquanto fazia pesquisas para seu livro de 2014, When Books Went to War [”Quando os livros vão à guerra”].

Soldado lê em um campo inundado na Nova Guiné durante a Segunda Guerra Mundial Foto: Coleção de Molly Guptill Manning via The New York Times

Os livros de bolso tinham o objetivo de ser um passatempo para os soldados. Mas também queriam lhes lembrar por que lutavam e traçar um nítido contraste entre os ideais americanos e a queima de livros promovida pelos nazistas.

Este é um aspecto da história que ficou ainda mais ressonante em meio às atuais batalhas partidárias sobre a proibição de livros. E Manning vê aí uma lição clara.

“Durante a Segunda Guerra Mundial, o público americano se manifestou numa certa direção”, disse ela. “E essa direção era: não devem existir restrições sobre o que as pessoas leem”.

Um pacote semiaberto de 'Armed Services Editions', brochuras especialmente projetadas que foram criadas durante a Segunda Guerra Mundial e enviadas aos soldados americanos em campo Foto: James Estrin/The New York Times

A ideia de que bons soldados precisavam de bons livros não começou com a Segunda Guerra Mundial. Durante a Primeira Guerra Mundial, a Associação Americana de Bibliotecas colaborou com o exército para reunir e distribuir livros doados.

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Mesmo antes de Pearl Harbor, a associação já planejava uma nova “Campanha do Livro da Vitória”, com o objetivo de recolher 10 milhões de livros em 1942. A meta foi alcançada, embora com preocupações de que muitos volumes estivessem sujos, desatualizados ou ilegíveis. A campanha foi renovada em 1943, com a ressalva de que a população deveria doar apenas “livros bons”.

Os livros eram vistos não apenas como diversão, mas também como armas na luta pela democracia. Na propaganda americana, a livre troca de ideias era explicitamente contrastada com a queima de livros nazista. Numa mensagem aos livreiros em 1942, o presidente Franklin D. Roosevelt exaltou a liberdade de expressão, que estava no cerne da sua ideia das Quatro Liberdades. “Nenhum homem e nenhuma força podem tirar do mundo os livros que incorporam a eterna luta do homem contra a tirania”, disse ele.

A propaganda americana, como esses pôsteres, contrastava a queima de livros nazistas com o compromisso americano com a liberdade de expressão Foto: Coleção de Molly Guptill Manning; Gilder Lehrman Collection/United States. Office of War Information

Mas era complicado levar essas armas às mãos dos soldados. Enviar livros pesados para o exterior era impraticável. Assim, no início de 1943, o Conselho de Livros em Tempos de Guerra, um grupo de editores formado em 1942, procurou Ray Trautman, o bibliotecário-chefe do exército, com a ideia de produzir brochuras especiais para os soldados no exterior. O resultado foram os volumes da Armed Services Editions, projetados para caber no bolso do peito ou da calça de um uniforme padrão.

A série misturou entretenimento com algo mais edificante. O primeiro título foi The Education of Hyman Kaplan, uma coleção de histórias em quadrinhos de Leonard Q. Ross (pseudônimo de Leo Rosten, futuro autor de The Joys of Yiddish). Os mais de 1.300 títulos que vieram em seguida trouxeram clássicos da literatura, ficção contemporânea, poesia, história, biografia, humor e até um livro de arte: uma compilação de pinturas de soldados.

Um panfleto de 1945 dizia que os livros ajudavam a criar “um público leitor jovem e masculino”, acolhendo até mesmo alguns jovens que talvez não estivessem ansiosos para se aprofundar, digamos, em Typee: Um Olhar sobre a Vida na Polinésia, de Herman Melville. Um fuzileiro naval citado na exposição disse que, quando o livro lhe foi entregue, ele “não teve o que fazer a não ser lê-lo”. Seu veredito? “Bacana. Esse cara escreveu sobre três ilhas em que estive!”

Mesmo antes de Pearl Harbor, bibliotecários começaram a organizar uma campanha nacional de arrecadação de livros com o objetivo de recolher milhões de exemplares para as bibliotecas das bases militares Foto: Collection of Molly Guptill Manning via The New York Times

As edições também impulsionaram a sorte de alguns autores. Quando F. Scott Fitzgerald morreu, em 1940, O Grande Gatsby, publicado em 1925, tinha vendido pouco mais de 20 mil exemplares. Uma vez selecionado para a Armed Services Edition, mais de 120 mil exemplares foram distribuídos, estimulando sua transformação em clássico.

Em abril de 1944, The New York Times Book Review disse que os livros de bolso eram “tão populares quanto as pin-ups”, com mais de 100 mil exemplares enviados por dia. Alguns pacotes, segundo o Times, foram entregues de paraquedas a leitores ávidos.

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As fotografias mostram soldados lendo enquanto cortam o cabelo, se recuperam no leito de um hospital de campanha ou enfrentam várias outras condições desafiadoras. Manning, a curadora, disse que sua imagem favorita é a de um soldado deitado numa cama improvisada no meio de um campo inundado na Nova Guiné, perdido dentro de um livro. “Não parece encenado”, disse ela. “Parece que ele está relaxando de verdade”.

Cada capa incluía uma faixa informando se o livro havia sido cortado ou não, um reflexo das preocupações com a censura Foto: Collection of Molly Guptill Manning via The New York Times

Os livros, cuja produção custava cerca de 7 centavos, eram distribuídos gratuitamente, e os soldados eram incentivados a repassá-los até se despedaçarem. Os organizadores usaram pesquisas e viagens a campo para avaliar o que os soldados realmente queriam ler.

Um dos títulos mais populares – pelo menos a julgar pelas mais de 15 mil cartas de soldados em seus documentos, disse Manning – foi A Tree Grows in Brooklyn, de Betty Smith, lançado às pressas pela Armed Services Edition logo depois de entrar na lista dos best-sellers.

Mas os soldados muitas vezes preferiam livros “que tenham pelo menos uma essência – para ser franco – de sexo, um bocado de sexo”, como disse um homem ao conselho. Uma cópia surrada de Strange Fruit (1944), a história picante de Lillian Smith sobre um romance interracial proibido, mostra sinais de que foi bastante lido.

Uma cópia muito lida de "Strange Fruit", o livro picante de Lillian Smith de 1944 sobre romance interracial, que gerou polêmica no país Foto: Collection of Molly Guptill Manning via The New York Times

O programa evitou títulos que insultassem os aliados dos Estados Unidos ou menosprezassem qualquer grupo específico. Riders of the Purple Sage, de Zane Grey, por exemplo, foi cancelado devido à preocupação com uma referência a bispos mórmons enganadores. Mas, no geral, o programa teve o cuidado de apresentar uma variedade de livros e evitar qualquer aparência de censura.

Cada livro tinha uma etiqueta na parte inferior, dizendo se era um “livro completo” ou se havia sido resumido para caber na contagem máxima de 512 páginas.

“Os editores eram realmente contra a censura. Eles se preocupavam com o risco de que, toda vez que cortassem páginas para caber na edição de bolso, alguém pensasse que estavam cortando ideias”,

disse Manning.

Ainda assim, o espectro do preconceito partidário ameaçou o projeto. Em 1944, quando Roosevelt tentava um quarto mandato, o Congresso aprovou uma lei destinada a criar uma cédula de votação para os soldados. Como parte da lei, os republicanos, achando que os democratas estavam tentando influenciar o voto militar, incluíram uma cláusula declarando que nenhum material “contendo argumentos políticos ou propaganda política” poderia ser distribuído às tropas.

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A imprecisão da linguagem causou arrepios nos organizadores da coleção. Alguns títulos foram cancelados, entre eles Yankee From Olympus (uma biografia do ex-juiz da Suprema Corte Oliver Wendell Holmes que trazia opiniões favoráveis a Roosevelt) e One Man’s Meat, de E.B. White.

Nesta foto sem data, fuzileiros navais examinam uma biblioteca em uma tenda em Iwo Jima, no oeste do Pacífico. As caixas na parte de trás parecem conter as 'Armed Services Editions' Foto: via Grolier Club via The New York Times

Dois meses depois, houve uma alteração na lei e todos os livros adiados foram lançados. White escreveu mais tarde que nunca descobriu por que seu livro – uma coletânea de ensaios sobre a vida na sua fazenda na costa do Maine – tinha sido proibido, mas tomou a medida como um elogio. “Mostra que alguém leu”, escreveu ele.

A coleção Armed Services Editions deixou de ser publicada em 1947. (O último título foi Home Country, de Ernie Pyle). Mas sua grande popularidade ajudou a inaugurar a era do livro de bolso, que a indústria editorial tinha rejeitado como um formato impróprio para livros de “qualidade”.

Hoje, a revolução do livro em brochura foi substituída pela revolução digital, que deu aos soldados acesso gratuito à biblioteca mundial nos seus smartphones. Mas depois que seu livro de 2014 foi publicado, Manning recebeu e-mails de soldados que disseram que às vezes ainda precisavam de coisas para ler quando estavam sem sinal de internet ou carregadores de celular.

“Eles disseram: ‘Ainda precisamos de livros de papel’”, disse ela.

“Algumas coisas não mudam nunca”

Molly Guptill Manning

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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