Convidada da Flip, a argentina Beatriz Sarlo redescobre a América

Em 'Viagens', paisagens se misturam no filtro da memória pessoal

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Foto do author Ubiratan Brasil

A crítica e escritora argentina Beatriz Sarlo, de 73 anos, nunca se dispôs a escrever sua autobiografia. Uma das principais pensadoras da América Latina, ela sempre preferiu exercer sua apurada observação em obras como A Cidade Vista, em que analisa as profundas transformações sofridas por Buenos Aires, ou em livros em que comenta a política e a modernidade de seu país. Assim, torna-se ainda mais surpreendente a publicação aqui de Viagens - Da Amazônia às Malvinas, livro que a editora e-galáxia lança agora apenas em e-book. Trata-se de relatos de viagens empreendidas por uma jovem Beatriz Sarlo nos anos 1960 pela América Latina. Ao lado de amigos, ela visitou o norte do Brasil, nossa capital ainda nascente, Peru, Equador, além de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Um território à época atravessado por revoluções. Foram viagens por barco, caminhadas por montanhas e selva, aventuras que, quando a autora se permite abandonar ao calor da narrativa, trazem ecos de Joseph Conrad e Jack London. Com exceção do texto sobre as Malvinas, para onde viajou em 2012 já com uma visão política mais acentuada, Beatriz Sarlo conta que tanto ela como os colegas de aventura viviam “em uma espécie de otimismo epistemológico”, pois buscavam naquelas terras a revelação de uma experiência que, acreditavam, mudaria completamente o signo político do continente. “Viajávamos para conhecer, mas não estávamos em condições de entender o que encontrávamos.” Sobre o assunto, Beatriz, convidada da próxima Flip, respondeu às seguintes questões.

Escrever crônicas de viagem foi uma necessidade? Como o livro a ajudou a ampliar seu projeto de investigação? Na literatura argentina, há relatos formidáveis de viagem. Como os de Sarmiento, em meados do século 19, sobre viagens pela Europa e Estados Unidos. Sarmiento viajou em busca de modelos para a futura organização nacional. Creio que pretendia encontrá-los na França e acabou profundamente fascinado pelas tendências democráticas de uma sociedade de “farmers” e com a centralização da educação na costa leste dos Estados Unidos. Nas primeiras décadas do século 20, Victoria Ocampo, escritora, fundadora da revista Sur, comprovou que sua vida foi marcada pelas estadias em Paris e, mais tarde, pela sua descoberta de Nova York. Quase todas as suas crônicas incluem deslocamentos no espaço e relações com o estrangeiro. Antes de escrever meu livro, durante muitos anos, eu ensinei e escrevi sobre as viagens de Sarmiento e de Victoria Ocampo. É um tipo de registro que mistura crônica e análise que aprecio muito. Como foi conseguir uma escrita íntima sobre as possibilidades da memória? Meu livro tem pouca intimidade pessoal. Em compensação, tem lembranças, muitas lembranças que concernem a outras pessoas. Creio que somos filhos das viagens que os outros realizaram antes: falo dos imigrantes, dos estrangeiros que conheci quando criança; falo deles mais do que de mim mesma. Nos capítulos relativos às viagens pela América Latina, procurei ser o mais fiel possível a um ente coletivo: o grupo de três ou quatro pessoas com quem viajei. Procurei escrever de maneira que fosse mais “nós” do que “eu”. Curiosamente, o capítulo mais fortemente pessoal, o único em que falo exatamente em meu nome, é o último, uma viagem realizada às Malvinas, há três anos.Como foi enfrentar com honestidade assuntos que se verificaram décadas atrás sem perder o frescor e a ingenuidade daquele momento? Foi difícil. Não queria me sentir superior à garota muito jovem que fui; não queria colocar em ridículo sua ingenuidade nem sua ignorância. Mas tampouco desejava dissimular esses aspectos e contar uma história em que podia parecer que eu estava entendendo mais do que entendi naquele momento. Tive de procurar com muito cuidado o ponto de vista e resistir à tentação de oferecer uma leitura anacrônica da viagem, como se soubesse nos anos 1960 o que só pude saber muito mais tarde.A senhora afirma, em um determinado texto, que não havia lido Benjamin na época - somente quando foi às Malvinas e, mesmo assim, foi um choque. De que forma os trabalhos de Barthes e Benjamin ajudaram na escrita? Na idade que tenho hoje, estou em condições de dizer, sem medo de me equivocar, que Barthes e Benjamin (junto com Borges) foram as maiores influências. Primeiro foi Barthes, as Mitologias, e depois, quase em seguida, S/Z. Ali, aprendi uma forma de ler e sobretudo aprendi que todo acontecimento cultural tinha de ser lido com a mesma intensidade com que se lê uma frase literária. Conheci Benjamin em meados dos anos 1970, nas horríveis traduções espanholas daqueles anos. Inicialmente, o que me causou impacto foram suas visões sobre a cidade: esses fragmentos iluminadores que finalmente foram publicados como a obra não concluída Passagens.É o seu primeiro livro escrito na primeira pessoa. Que riscos sabia que iria enfrentar? Durante muitos anos, escrevi semanalmente crônicas jornalísticas na primeira pessoa (muitas foram publicadas no Brasil com o título Tempo Presente). Era o equivalente a um treino na primeira pessoa, a sair e entrar desse registro, aprender até onde se pode expor a subjetividade e o que está em jogo nessa exposição. Por outro lado, em livros como Cidade Vista e Cenas da Vida Pós-Moderna, há uma forte tendência no sentido da primeira pessoa. De que forma essas viagens influenciaram a senhora ideologicamente? Éramos estudantes com uma visão empírica ingênua: caminhar por um lugar (fora a selva, a puna ou uma cidade) era conhecer. Não havia muitas mediações intelectuais, teóricas nem conceituais. Isto nos provocava grandes sofrimentos. Caminhar e sofrer na região de Puna, perder o fôlego, valia a pena porque se recebia, sem tocar a folha de um livro, algo que ficaria para sempre como conhecimento. Acreditávamos que, para conhecer uma canção popular, bastava estar numa festa. Não como etnógrafos, mas, sim, nos embriagando com os camponeses. Valorizávamos a experiência de uma maneira absolutamente radical como fonte de conhecimento e isso também era algo que nos dava forças para avançar. Nós nos comportávamos como se tivéssemos lido Rousseau, mas não tínhamos lido Rousseau, nosso nível de leitura era baixíssimo. Pensávamos que qualquer indivíduo que estivesse próximo da natureza ou do trabalho, da materialidade da vida - e claro que Rousseau não disse isto - era bom. Não importava se era um mineiro, um camponês, um vendedor ambulante. Para nós, não representavam nenhuma ameaça. Essa era nossa confiança mais radical. E não tínhamos lido esse convencimento em nenhuma parte. Eram extratos de ideologias, de uma concepção latino-americana, a ideia de que a América Latina era uma epopeia que sucederia em algum momento. Sem dúvida, tratava-se de uma crença ingênua. Mas nos permitiu ver e compreender algumas coisas.Repetiria essa experiência hoje em dia? Como seria? Essa experiência não se repetirá por duas razões. Já não sou o que era há 20 anos. Por outro lado, a América Latina não era na década de 1960 o continente turístico que é hoje. Por onde viajamos pela primeira vez, hoje se deslocam contingentes de jovens, com seus equipamentos de última geração, suas câmeras e celulares. Acho que a viagem às Malvinas foi a última viagem importante da minha vida.VIAGENSAutora: Beatriz SarloTradução: André de Oliveira LimaEditora: e-galáxia (300 págs., R$ 16,90 apenas em e-book)

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