Um raro burburinho tomou conta da Feira do Livro de Frankfurt, em outubro de 2012. Desde que o avanço tecnológico facilitou as negociações entre editores e quase nenhum segredo mais era bem guardado, a notícia do surgimento de um livro com potencial de best-seller mundial tomou conta de quase todas as rodas, evocando uma excitação considerada extinta. Todos comentavam sobre “aquele livro francês com título enorme e muitas páginas”, publicado no mês anterior e cujo título escapava da memória – era preciso buscar as anotações para saber que se tratava de A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert.
Do autor, Joël Dicker, também pouco se sabia, especialmente que se tratava de um jovem suíço e que aquele título era o sexto escrito por ele. Passados alguns meses, a obra já havia vendido mais de dois milhões de cópias e traduzida para 37 línguas, destronando pesos pesados da literatura como Dan Brown e colecionando elogios em críticas as mais variadas – no Brasil, a edição em português ficou a cargo da Intrínseca.
Aos 28 anos, portanto, Dicker chegará ao Brasil na próxima semana na condição de jovem celebridade das letras – ele será um dos participantes da 11ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que começa na quarta, 30, e se estende até domingo, 3, na cidade fluminense. “Jamais viajaria nessas condições não fosse esse sucesso que virou minha vida de ponta-cabeça”, disse Dicker, há algumas semanas, em conversa ao Estado, por telefone. Ele falava de Nova York, onde iniciaria um tour de lançamento por várias cidades americanas, cercado de intensa expectativa.
Afinal, de que se trata A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert, aclamado como um “fenômeno mundial” pelo jornal francês Le Monde e “a mais excitante descoberta suíça depois do tenista Roger Federer”, segundo o exagerado comentário de sua editora na Europa?
O livro, que tem 576 páginas, é um suspense centrado em Marcus Goldman, escritor de 28 anos cuja vida se transforma radicalmente ao ver seu primeiro livro se transformar num best-seller. “Não posso dizer que é autobiográfico, pois escrevi sem nenhuma expectativa, uma vez que, dos meus cinco livros anteriores, apenas um tinha sido publicado e vendido pouco mais que cem cópias”, adianta-se Dicker.
Crise. Passada a euforia em torno de seu nome, Goldman se vê em meio a uma crise criativa justamente quando seu editor e seu agente cobram um segundo romance. Pior: da mesma forma que sua imagem está em declínio, outro jovem autor desponta como nova promessa, ocupando o espaço antes à disposição para Goldman.
Desesperado, ele recorre a seu antigo professor, Harry Quebert, que vive em Aurora, no estado americano de New Hampshire. Quebert é um romancista respeitado e ensinou as primeiras técnicas literárias a Goldman. Quando tudo parece encaminhado, a reviravolta: o corpo de uma jovem de 15 anos, desaparecida sem deixar rastros em 1975, é encontrado enterrado no jardim de Quebert, ao lado do original do romance que o consagrou.
O professor confessa ter tido um caso com a garota e também de ter escrito o livro para ela, mas jura inocência em relação ao assassinato. Disposto a ajudar Quebert, Goldman inicia uma apuração paralela, mas sua excitação também tem um cunho pessoal, pois percebe ali um maravilhoso fio da meada para seu aguardado segundo romance.
Nesse ponto, a novela assume uma fascinante posição, pois o leitor se encontra diante de uma obra escrita por um jovem escritor (Dicker) e que trata de outro jovem autor (Goldman) em processo criativo. Um exercício metalinguístico elaborado a partir de uma trama policial, pois Goldman, em sua investigação, impõe-se três questões cruciais: quem matou a garota, o que realmente aconteceu naquele verão de 1975 e, finalmente, o que mais lhe importa, como retomar o sucesso e escrever outro romance bem sucedido.
Nessa empreitada, ele, seguindo os mandamentos de um bom detetive, sai a campo e segue as pistas que encontra no livro do mentor. Também vai aos bosques, às praias e às áreas mais isoladas de New Hampshire, sempre em busca dos segredos bem guardados tanto dos cidadãos de Aurora como do próprio Quebert.
Como em todo suspense, pistas falsas surgem ao longo do enredo, confundindo o leitor para excitar sua curiosidade. Dicker jura que não foi algo previamente elaborado. “A confusão dos leitores espelha a minha própria confusão enquanto escrevia a história”, conta. “Não coloquei pistas falsas deliberadamente, apenas tentava descobrir sozinho o que estava escrevendo.”
O relacionamento entre Quebert e Nola, a jovem assassinada, fez a crítica especializada europeia lembrar de Lolita, clássico de Vladimir Nabokov, em que um professor se encanta com uma garota. A própria escolha dos nomes de alguns personagens pode induzir um leitor mais atento a acreditar em uma semelhança proposital, pois Nola faz pensar em Lola, Lolita, e Quebert tem uma proximidade vocal com Humbert Humbert, o professor criado por Nabokov.
E, apesar de ser comprovado o fato de Nabokov ter se apropriado de um conto, escrito pelo alemão Heinz von Lichberg em 1916, para criar sua obra-prima, Dicker apressa-se em desfazer qualquer tentativa de apropriação criativa. “O que eu pretendi foi tratar das diversas formas do amor”, defende-se.
Segundo o escritor suíço, a palavra “amor” ganha diferentes sentidos, dependendo do passado cultural de quem a utiliza. “Em francês, por exemplo, a alusão que normalmente se faz é romântica, um sentimento que alguém reserva para seu parceiro. Já nos Estados Unidos, ‘amor’ é um vocábulo muitas vezes desperdiçado, especialmente quando traduz uma relação de amizade ou mesmo de sexo. Era no amor francês em que eu pensava quando construí a relação entre Nola e Quebert. Não ultrapassei a linha da moralidade, tanto que não há a descrição de nenhuma cena de sexo entre os dois.”
Em outro aspecto, Joël Dicker pretende discutir – e até tornar público – o processo criativo de um escritor. Afinal, quando se torna um autor extremamente famoso, o personagem Marcus Goldman se acomoda por conta da fama, iludido por tudo estar à sua disposição. “É por esse motivo que ele não consegue escrever nenhuma linha de seu segundo romance: Marcus vai atrás apenas do caminho mais fácil, o que cria um confronto com o que aprendeu com seu professor, que lhe ensinou a sempre utilizar todo seu potencial.”
Zona de conforto. É justamente no momento em que decide provar a inocência de Quebert que Goldman desperta da crise criativa e deixa a zona de conforto. “Ele se impõe um desafio como pessoa e como autor a fim de libertar tanto seu professor como sua criatividade”, comenta.
Algo semelhante aconteceu ao jovem escritor – segundo Dicker, o que distingue A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert de seus cinco livros anteriores é a seriedade com que passou a encarar a escrita. “Nos outros, eu acreditava que o talento bastaria. Assim, jamais reli ou reescrevi algo até finalmente ser mais criterioso quando comecei as primeiras linhas de Quebert.”
Outra ousadia foi encarada com tranquilidade: recriar, com perfeição, a atmosfera interiorana dos Estados Unidos, uma armadilha para muitos autores pouco familiarizados com o ambiente, crentes de que pesquisas em livros são suficientes. Durante a infância, Dicker desfrutou muitas férias na região da Nova Inglaterra, onde morou seu avô. “Por conta disso, acredito conhecer a América por dentro”, conta ele que, no período, descobriu um livro que marcou sua juventude: Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos. “Li uma tradução em francês quando estava com 12 anos e fiquei fascinado. Para mim, é uma obra-prima.”
Quem é
JOËL DICKER
Escritor
Nascido em Genebra, na Suíça, em 1985, tornou-se conhecido com o livro A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert. Com ele, ganhou prêmios que representam dois extremos do leitorado francês: o Prix de l’Académie, da mais alta instituição das letras, e o Goncourt des Lycéens, escolhido por alunos do ensino médio.
A VERDADE SOBRE O CASO HARRY QUEBERT
Autor: Joël Dicker
Tradução: André Telles
Editora: Intrínseca (576 págs., R$ 39,90)
Leia trecho do livro:
“Todo mundo falava do livro. Eu não conseguia mais andar em paz pelas ruas de Nova York, nem dar uma corridinha pelas aleias do Central Park, sem que os passantes me reconhecessem e exclamassem: “Ei, é o Goldman! É aquele escritor!” Havia inclusive quem arriscasse passos de corrida para me seguir em busca de respostas para as perguntas que os atormentavam: “O que você disse no seu livro é verdade? Harry Quebert fez mesmo aquilo?” No bar do West Village que eu frequentava, alguns fregueses não se constrangiam mais em se sentar à minha mesa para me questionar: “Estou lendo seu livro, Sr. Goldman, e não consigo parar! O primeiro já era bom, mas este agora! É verdade que recebeu um milhão de dólares para escrevê-lo? Quanto anos o senhor tem? Só trinta? Trinta anos! E já com essa grana!” Até o porteiro do meu prédio acabou me acuando demoradamente...”
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.