Dalton Trevisan não dava entrevista. Mas falou ao ‘Estadão’ sobre vida e obra. Leia na íntegra

A conversa foi publicada no ‘Suplemento Literário’ em 1972; maior contista brasileiro morreu aos 99 anos

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Por Mussa José Assis
Atualização:

Avesso a entrevistas, Dalton Trevisan, que morreu aos 99 anos, falou ao Estadão sobre sua vida e obra, em 1972. Leia abaixo o texto na íntegra:

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“O escritor é um ser maldito. O escritor é uma pessoa que não merece confiança. Um amigo chega e me conta as maiores dores: eu escuto com atenção, mas estou é recolhendo material para mais um conto. E eu sei disso na hora.”

Dalton Trevisan, 47 anos, contista de Curitiba, não gosta de muita coisa, mas duas o aborrecem particularmente: gente incômoda e entrevistas. Não recebe um jornalista que pretenda entrevistá-lo. Despista, desconversa, devolve questionários em branco: “De jeito nenhum. Não tenho nada a dizer”.

”Surge então a má consciência. Sei que estou fazendo assim e não desejaria fazer, mas não há outro jeito. Vejam meu conto Últimos Dias: é sobre a morte de minha avó. Era uma pessoa por quem eu tinha a maior afeição. No entanto, isso não aparece no conto, só aparecem as coisas negativas. Não sei, talvez tenha sido inabilidade minha.“

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”Não dou entrevista. Nunca dei”, afirma.

Morreu Dalton Trevisan, um dos maiores escritores da história do Paraná e um dos maiores contistas brasileiros, aos 99 anos Foto: Acervo Dalton Trevisan / Secretaria da Cultura Paraná

Dalton Trevisan nunca deu uma entrevista, e há muito tempo não se deixa fotografar. O que sobre ele já se publicou até esta edição sempre foi obtido através de amigos, juntando frases soltas. Ele considera prejudicial o fato de o leitor conhecer o escritor: “Muitas vezes, esse conhecimento sobre a vida particular do autor relega a própria obra a um segundo plano. Eu não sou assunto, o autor nunca é assunto. Notícia é a sua obra. Ela pode ser discutida, interpretada, contestada”.

Dalton Trevisan não quer dar uma entrevista.

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”Por que, em lugar da entrevista, vocês não publicam um conto meu? A obra é que é importante. Não tenho nada a dizer fora de meus livros. O autor não vale o personagem. O conto é sempre melhor que o contista.”

O contista, tido como o melhor vivo do Brasil, continua não querendo dar uma entrevista, mas concorda em “conversar”: “Sou um escritor que vive em Curitiba, que pouco sai de Curitiba. Que posso eu dizer sobre o panorama da literatura brasileira? O meu lugar é entre os últimos dos contistas menores”.

Ele nunca gostou de aparecer. Dalton Trevisan escreve – e publica – desde os 18 anos. É conhecido em Curitiba desde meados da década de 40, quando apareceu Joaquim. Alguns poucos privilegiados leram seus contos há mais de 20 anos, publicados em cadernos de cordel. Quando venceu o Concurso Nacional de Contos, em 1968, seu nome saiu dos fechados círculos intelectuais e virou notícia de jornal. Já disseram que ele se arrependeu de ter vencido o concurso. Aquilo lhe valeu uma notoriedade que ele nunca quis e da qual sempre se esquivou, algumas vezes até agressivamente (não perdoa um jornalista de Curitiba que esporadicamente divulga suas atividades literárias. Já chegou a telefonar ao diretor do jornal pedindo que proibisse o jornalista de citar seu nome)!

E no entanto Dalton Trevisan não é uma pessoa fechada, introvertida. Gosta de conversar nas rodas que se formam, depois das 11 horas da noite, na chamada Boca Maldita, uma esquina da Rua XV de Novembro, em Curitiba. Muitas vezes passa horas ali, contando piadas, “falando sem compromisso” e recolhendo material para os próximos contos.

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”Notícia policial, frase no ar, bula de remédio, pequeno anúncio, bilhete de suicida, o meu e o seu fantasma no sótão, confidência de amigo, a leitura dos clássicos”, tudo isso inspira Dalton Trevisan. “O que não me contam, eu escuto atrás da porta. O que não sei, eu adivinho – e, com sorte, você adivinha sempre o que, cedo ou tarde, acaba acontecendo.”

Muitas pessoas conhecidas de Curitiba são facilmente identificáveis como personagens de Dalton Trevisan.

”Não dou entrevista. É o cerne da minha personalidade.”

Entre uma conversa e outra na esquina da XV de Novembro, o contista vai ao cinema. Adora os westerns, principalmente os italianos.

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Ele nasceu em Curitiba em julho de 1925 (não diz o dia do mês, não gosta de receber cumprimentos). É advogado, mas desiludiu-se da profissão: mal chegou a exercê-la. É casado “muito bem casado”, pai de duas mocinhas, Rosana e Isabel. Sempre viveu em Curitiba: gosta da cidade, do seu quase perdido ar provinciano.

Não gosta de falar sobre si mesmo. Mas fala. “Adolescente, meu ideal era ser corredor dos 110 metros com barreiras. Jovem, de bigodinho, sonhei ser farol de dancing, o galā amado por todas as taxi-girls. Nem atleta, nem bailarino de gravatinha-borboleta. E repete: “Meu lugar é entre os últimos dos contistas menores”.

Dalton Trevisan nasceu e cresceu na Rua Emiliano Pernetta, onde vive até hoje, cuidando dos negócios que herdou do pai com seus dois ir- mãos. A velha fábrica de livro e porcelana já fechou: ele pensa agora em aproveitar o terreno para fazer um estacionamento.

O escritor Dalton Trevisan em imagem de 1979 Foto: Ronaldo De Souza/RONALDO DE SOUZA

Para que a entrevista?

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”O que vale é a obra. Há o preconceito de que depois do conto você deve escrever novela e, afinal, romance. Meu caminho será do conto para o soneto, e do soneto para o haicai.” Quer ser julgado pelo que escreve, “não pela maneira como eu vivo, pelo jeito que eu durmo, pelo que eu gosto de comer no almoço. O que interessa saber mais? Se eu demoro uma semana para escrever um conto? Se eu o reescrevo 20,30 vezes? Se eu escrevo a bico de pena ou se bato à maquina?”.

Dalton Trevisan quer ser julgado por apenas cinco obras: Novelas Nada Exemplares, Cemitério de Elefantes, O Vampiro de Curitiba, Guerra Conjugal e O Rei da Terra, este último no prelo: “Renego tudo que fiz anteriormente. Não reconheço nada que publiquei antes de No- velas Nada Exemplares. As versões anteriores de nada valem, não existem mais para mim. E não têm valor algum”.

A série de seus trabalhos que não tem valor algum começa com Sonata ao Luar e Sete Anos de Pastor, que não tiveram qualquer repercussão. Ele hoje se arrepende de tê-los publicado. Seu primeiro livro de penetração nacional foi Novelas, editado em 1959, e que acabou encalhando nas livrarias. Mas ele não perdeu o ânimo e empenhou-se mais a fundo nos contos: em edições particulares, foram lançados sete ou oito cadernos de cordel (ninguém sabe quantos foram ao certo e o autor não diz).

Em edições reduzidíssimas, formato de bolso, eram distribuídos entre os amigos e mandados pelo Correio. Ele afirma que não tem mais nenhum. Misteriosamente, sumiram os poucos que havia na Biblioteca Pública do Paraná.

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Mas Dalton Trevisan não se preocupa em destruir seus cadernos de cordel: “Afinal, o que não tem valor desaparece por si mesmo. O bom escritor nunca se acha realizado – a obra é sempre inferior ao sonho. Ao fazer as contas, ele percebe que negou o sonho, traiu a obra e cambiou sua vida por nada”.

Um conto de Dalton Trevisan nunca é definitivo – ele o reescreve uma, duas, dez vezes: “Para escrever o menor dos contos, a vida inteira é curta. Nunca termino uma história”.

A maioria dos contos que hoje aparecem nos cinco livros do escritor surgiram em primeira versão nos cadernos de cordel. “O que era bom sobrou. O resto eu renego.”

O escritor existe desde os tempos do ginásio. Certa vez, um professor de Português passou como tarefa uma redação com tema de livre escolha. Dalton Trevisan escreveu sobre uma criança pobre passando fome. O professor imediatamente tachou-o de comunista e neurótico.

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Recluso, Dalton Trevisan não dava entrevistas; ele considerava prejudicial o fato de o leitor conhecer o escritor Foto: Acervo Estadão

Ele, então com menos de 15 anos, sabia o que era comunista (era a época do Estado Novo). Neurótico, ele foi ver no dicionário. E hoje relembra o fato: “Foi o meu primeiro contato com os julgadores literários”.

Quando era acadêmico de Direito, participava dos jogos universitários. Sem quase saber nada, disputou certa vez uma prova de saltos ornamentais, pulando do último lance do trampolim do Country Clube de Curitiba. Um seu contemporâneo de faculdade lembra: “O Dalton caía na água sempre de barriga, parecia um sapo”.

Ainda estudante de Direito, começou a trabalhar na fábrica da família. Em março de 1945, explodiu uma chaminé do forno e ele teve uma fratura no crânio. Um mês no hospital. “Olhei pela primeira vez a morte dentro dos olhos e, mais que o sofrimento físico, doeu a revelação de que era mortal. Nesse dia, nasceu o escritor.” Nesse ano saiu o seu primeiro livro. Sonata ao Luar, “uma leviandade de jovem”.

Dalton Trevisan não dá entrevista, mas explica: “Não escrevo para mudar a vida, melhorar o mundo ou salvar minha alma. Um papel coberto de palavras vale mais que um papel em branco? É toda a minha desculpa de escrever. Escrever é a única justificativa que encontro para estar vivo. Meus gestos cotidianos são vazios. Mesmo o amor e o sexo – o sexo dura muito pouco tempo. Eu não tenho o dom de ganhar dinheiro, nem ambição de poder. Escrever é uma atividade inútil, mas para mim ainda é a menos inútil de todas e a que me faz continuar vivo”.

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Isolado em Curitiba. Dalton Trevisan conseguiu em 1946, e durante mais de dois anos, alcançar distantes meios literários e intelectuais do País. Joaquim, a revista por ele fundada aos 21 anos, tirou 21 edições. Publicou traduções de Joyce, estudos sobre Faulkner, Proust, Kafka, Sartre, Gide. Lançou os desenhos de Poty, publicou capas assinadas por Di Cavalcanti, Portinari e Heitor dos Prazeres. Na revista, publicava seus contos, fazia comentários assinados só com as iniciais e outros sem identificação. Seu segundo livro, Sete Anos de Pastor, reuniu os contos publicados ao longo daqueles 21 números.

”Não dou entrevista. Simplesmente porque não há perguntas a responder. Minha opinião sobre o divórcio? Sobre o amor livre? Sobre a guerra do Vietnã, a bomba atômica, o bigode de Salvador Dalí? Quem quiser saber o que eu penso que leia o que escrevo. Garanto que na minha obra estão as respostas para todas as perguntas. E as que não existirem, eu não as darei.”

Ele admite que um dia poderá escrever um soneto, mas “romance e novela, jamais”. Sobrou um verso de uma Elegia Santíssima de toda a sua obra renegada, e isso o deixa vermelho de vergonha:

Meu coração é a água

podre

num vaso de flores

que os ratos roem na adega

Bebendo-lhe o sangue com

pequenos goles,

rabinhos satisfeitos.

Não se considera difícil: “Apenas não gosto das pessoas que não conheço. E esbarro diariamente comigo mesmo em todas as esquinas de Curitiba”.

Sua opinião sobre sua cidade: “Gosto de Curitiba. Gostava mais, hoje cresceu demais. Tenho pavor de cidade grande”. Sobre seu isolamento: “Não posso me comunicar com escritores que ainda estão na pré-história da literatura”.

”Se o escritor tem valor, mesmo que ele quisesse não poderia deixar de participar de seu tempo. Eu participo através de meus contos. Não de entrevistas. Posso escrever um conto sobre os buracos da Lua. E se eu for um bom escritor, qualquer pessoa saberá onde eu moro, qual é a minha metafísica e qual é a minha posição política.”

Quando alguém comenta que o Vampiro de Curitiba é ele mesmo, responde: “Vampiro sim, mas de almas. Espião de corações solitários. Um escorpião de bote armado. Eu só invento um vampiro que existe”. Se pedem um conselho para um escritor que começa, diz apenas: “Tenha talento”.

Os que o conhecem leem seus contos. Ele não gosta: “Eu preferia que não lessem. Eles devem pensar: como que uma pessoa, educada com carinho, nos melhores sentimentos, virou esse monstro moral?”.

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