A certa altura do elusivo As Planícies, o narrador discorre sobre paisagens influentes, mas raramente vistas. Eis aí uma bela forma de apresentar o escritor australiano Gerald Murnane, que apareceu entre os favoritos ao Nobel de Literatura de 2024 nas casas de apostas.
Nascido em 1939, ele já foi descrito como o maior prosador de língua inglesa sobre quem a maioria das pessoas nunca ouviu falar. Existem alguns autores assim, que parecem trabalhar à margem e, talvez por isso mesmo, produzam obras tão ímpares. O israelense Youval Shimoni e o norte-americano Michael Brodsky são ótimos exemplos de escritores pouco conhecidos, mas estupendos.
Voltando a Murnane, o lançamento pela Todavia desse grande romance do autor, em tradução de Caetano W. Galindo, talvez angarie leitores entre os poucos que ainda se interessam por literatura em nosso país escangalhado.
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Murnane cogitou se tornar padre, mas abandonou essa ideia. Bacharelou-se em artes pela Universidade de Melbourne e lecionou em escolas primárias e no Victoria Racing Club. Depois de ensinar pessoas a montar cavalos, ele passou a lidar com literatos em aulas de escrita criativa, o que não deixa de ser uma curiosa trajetória profissional.
Seus dois primeiros romances, Tamarisk Row (1974) e A Lifetime on Clouds (1976), são narrativas previsivelmente semiautobiográficas, mas caracterizadas por estilo e abordagens peculiares. O primeiro é um relato sobre a infância no interior do estado australiano de Victoria. O segundo, talvez o livro mais engraçado que escreveu, é dominado pela figura de um adolescente que, vivendo em Melbourne nos anos 1950, reage à repressão católica com uma coloridíssima imaginação sexual.

Publicado em 1982, As Planícies é o primeiro romance no qual se verifica o que poderíamos chamar de estilo maduro do autor. Não é que os dois trabalhos anteriores sejam “imaturos”, mas, olhando à luz do que ele publicaria depois (incluindo sua obra-prima, Inland), temos aqui uma bem-humorada reflexão de ecos metafísicos acerca da própria constituição da realidade. Lemos no parágrafo inicial: “Estava à procura de algo naquela paisagem que apontasse para algum sentido complexo por trás das aparências”.
O narrador sem nome é um suposto cineasta que se lança às planícies da Austrália a fim de produzir um documentário intitulado O Interior. Ali, encontra a elite local que, ciosa de sua cultura, costuma contratar intelectuais e artistas que, vivendo nos casarões dos proprietários, trabalham para deslindar as peculiaridades ambientes.
É um trabalho sempre fugidio, como se a paisagem e os habitantes das planícies esvanecessem por entre os dedos daqueles que procuram fixá-los. Não é de se admirar que os próprios locais discordem entre si e com os contratados, e há páginas e páginas engenhosas e engraçadas sobre querelas filosóficas (vide o conflito entre “Lonjuristas” e “Leporinos”).
Contratado por um desses proprietários, o narrador se muda para o casarão da família do mecenas, onde passa a trabalhar nas anotações que futuramente resultarão (ou resultariam, pois não há indícios de que o filme tenha sido ou venha a ser realizado) no documentário. “Eu já tinha pensado em O Interior como um conjunto de cenas de um filme muito maior que só podia ser visto de um ponto de observação que eu ignorava por completo”, ele diz.
E mais: “Quando meu carro foi entrando pela estrada eu disse a mim mesmo que estava desaparecendo em algum mundo particular e invisível cuja entrada era o ponto mais solitário da planície”; “Não apenas meus anos de leitura mas também minhas longas conversas com homens das planícies (...) me conferem a certeza de que as pessoas daqui concebem a vida como um outro tipo de planície. Não lhes serve de nada a conversa banal a respeito de jornadas que atravessam os anos ou coisas assim”. Como registrar isso?
O último dos trechos citados acima é importante por servir como um comentário acerca do próprio andamento do romance. Não há nele nada parecido com uma progressão narrativa tradicional. A voz do narrador, sobre quem quase nada sabemos, narra pouquíssimas ações e progressões.
Temos, na parte inicial, a preparação para o momento (e a descrição do momento em si) no qual o protagonista se colocará diante dos proprietários de terras e discorrerá sobre o projeto cinematográfico que tem em mente, buscando apoio logístico e financeiro.
Depois, na segunda metade, há digressões acerca de uma das filhas e da esposa do mecenas, e também sobre este e sua propriedade, sobretudo a biblioteca, onde, aliás, o narrador “dialoga” (em silêncio e imaginativamente, por assim dizer) com a mulher do patrão.

O protagonista nos lembra de que “há poucas chances de que os homens das planícies tomem o que tenho a lhes mostrar por alguma espécie de história”. Na verdade, uma das melhores passagens do livro diz respeito justamente aos livros lidos pela esposa do mecenas, os quais “seriam talvez chamados de romances numa outra Austrália”, embora, nas planícies, eles sejam “um ramo respeitado da filosofia moral”.
Há sempre algo de escorregadio nessas caracterizações. A exemplo das paisagens lá fora, é como se tudo fugisse a qualquer categorização: a “essência” das planícies, das pessoas, das leituras, do documentário e do próprio romance é fundamentalmente inapreensível, mas, por outro lado, a tentativa de apreendê-la é incontornável.
Quando lemos As Planícies, é como se o romance visível, legível, tangível, escondesse outro romance, inalcançável ou mesmo incognoscível. “Estamos viajando em alguma direção no mundo que tem forma de olho”, diz um personagem. “E ainda não vimos as outras terras que esse olho enxerga.”
Murnane parece vaguear justamente pelos limites das fronteiras literárias e metafísicas, tangenciando o indizível e oferecendo alguma definição ao indefinível.
As Planícies
- Autor: Gerard Murnane
- Tradução: Caetano W. Galindo
- Editora: 112 págs.; R$ 69,90; R$ 49,90 o e-book)
Leia um trecho de ‘As Planícies’
À tarde me juntei a um dos grupos de homens das planícies que entravam vindos da rua principal e me sentei aos pontos costumeiros deles no enorme balcão. Escolhi um que parecia incluir intelectuais e guardiães da história e do folclore do distrito. Julguei pelas vestimentas e pelo porte que não eram pastores nem vaqueiros, embora fosse possível que passassem boa parte do tempo ao ar livre. Alguns talvez tivessem começado a vida como jovens filhos das grandes famílias donas de terra. (Todos nas planícies deviam sua prosperidade à terra. Cada vilarejo, grande ou pequeno, era impulsionado pela riqueza infinda dos latifúndios ao redor.) Usavam roupas da classe culta e desocupada das planícies — calça cinza lisa com vincos rígidos e camisa branca impecável com clipe de gravata e braçadeiras combinando.
Queria muito ser aceito por aqueles homens e me preparei para todo e qualquer teste que pudessem me propor. Contudo eu mal contava com a possibilidade de recorrer a algo que tivesse lido nas minhas estantes cheias de livros sobre as planícies. Citações literárias iriam contra o espírito do encontro, ainda que qualquer um daqueles homens tivesse lido os livros que eu pudesse elencar. Talvez porque ainda se sentissem cercados pela Austrália, os homens das planícies preferiam considerar a leitura como um exercício particular que lhes dava bases para suas obrigações públicas mas não podia substituir sua obrigação de cultivar uma tradição consensual.
E, no entanto, o que era essa tradição? Ouvindo os homens das planícies, fiquei com a desconcertante sensação de que eles não desejavam contar com um conjunto de crenças comuns: parecia que cada um ficava incomodado se tivesse a impressão de que um outro dava como certo algo que ele afirmava a respeito das planícies como um todo. Era como se cada homem dali escolhesse parecer um habitante solitário de uma região que só ele sabia explicar. E quando falava de suas planícies particulares, parecia escolher as palavras como se a mais simples delas não viesse de um vocabulário qualquer mas derivasse seu sentido apenas do uso idiossincrático que ele fazia dela.
Naquela primeira tarde vi que o que já tinha sido descrito como a arrogância dos homens das planícies era somente sua relutância em reconhecer um terreno comum entre eles e os outros. Era exatamente o contrário (como eles mesmos sabiam muito bem) da pulsão comum entre os australianos daquele tempo de enfatizar tudo que pudessem ter em comum com outras culturas. Um homem das planícies não apenas dizia ignorar os hábitos de outras regiões como fazia questão de parecer estar equivocado quanto a eles. O que mais irritava as pessoas de fora era ele fingir ser desprovido de qualquer cultura singular em vez de permitir que sua terra e seus hábitos fossem considerados parte de uma comunidade maior de gostos e modas contagiosos.
Eu continuava sem sair do hotel, mas quase todo dia bebia com um grupo novo. Por mais que tomasse notas e traçasse planos e esboços, ainda estava longe de saber ao certo o que meu filme mostraria. Estava à espera de receber um súbito ímpeto de determinação ao encontrar um homem das planícies cuja absoluta segurança só pudesse derivar do fato de ter acabado naquele mesmo dia de escrever a última página de suas notas para um romance ou um filme que rivalizasse com o meu.
Àquela altura eu já tinha começado a falar abertamente diante dos homens das planícies que encontrava. Alguns queriam ouvir a minha história antes de divulgar as suas. Eu estava preparado para isso. Tinha me disposto, sem que eles soubessem, a passar silenciosos meses estudando nas livrarias e galerias de arte do vilarejo para provar que não era mero turista ou curioso. Mas depois de uns dias no hotel eu havia preparado uma história que me servia bem.
Dizia aos homens das planícies que estava numa jornada, o que não era mentira. Não lhes contava a rota que tinha seguido até chegar ao vilarejo nem a direção em que seguiria quando saísse dali. Descobririam quando O interior estreasse no cinema. Nesse meio-tempo ficariam acreditando que comecei minha jornada num canto afastado das planícies. E, como eu tinha torcido para acontecer, ninguém duvidou de mim nem disse conhecer o distrito que eu mencionava. As planícies eram tão imensas que aqueles homens jamais ficavam surpresos ao ouvir que elas incluíam alguma região que nunca tinham visto. Além disso, muitos lugares mais afastados eram motivo de discussão — faziam ou não faziam parte das planícies? Nunca houve consenso sobre a verdadeira extensão das planícies.
Eu lhes contava uma história quase desprovida de acontecimentos ou realizações. Gente de fora faria pouco dela, mas os homens das planícies entendiam. Era o tipo de história que atraía os romancistas e dramaturgos e poetas entre eles. Leitores e plateias das planícies raramente se impressionavam com rompantes de emoção ou conflitos violentos ou súbitas calamidades. Imaginavam que os artistas que apresentavam coisas dessa natureza tinham sido enfeitiçados pelos ruídos das multidões ou pela pletora de formas e superfícies que existem na perspectiva violenta das paisagens do mundo além-planícies. Os heróis dos habitantes dali, na vida e na arte, eram algo como o homem que por trinta anos voltava no fim da tarde para sua casa ordinária com um jardim bem cuidado e arbustos murchos e ficava acordado até tarde da noite decidindo qual teria sido a rota da jornada que seguira por trinta anos para chegar aonde estava — ou o homem que nunca pegava nem a única estrada que se afastava de sua isolada casa de fazenda por medo de não reconhecer aquele lugar quando o enxergasse dos distantes pontos de vista que os outros adotavam.
Houve historiadores que sugeriram que as próprias planícies eram responsáveis pelas diferenças culturais entre os homens dali e o resto dos australianos. A exploração das planícies fora o evento mais marcante da história deles. O que de início parecia plano e inexpressivo acabou revelando incontáveis variações sutis de paisagem e a abundância de uma furtiva vida selvagem. Na tentativa de valorizar e descrever suas descobertas, os homens das planícies tinham se tornado mais observadores que o normal, mais atentos e abertos a graduais revelações de sentidos. Gerações posteriores reagiam à vida e à arte como seus antepassados tinham confrontado os quilômetros de pradarias que sumiam na neblina. Enxergavam o próprio mundo como mais uma planície numa série infinita delas.