‘Descobri um gênio’, diz Juan Cárdenas sobre Machado de Assis na Flip; leia entrevista

‘Graças a Machado, comecei a a compreender situações da região onde nasci, Popayán, no interior da Colômbia’, contou autor ao ‘Estadão’

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Foto do author Ubiratan Brasil
Atualização:

Há 20 anos, o escritor colombiano Juan Cárdenas descobriu a literatura de Machado de Assis ao traduzir a obra do Bruxo do Cosme Velho para o espanhol. “Descobri um gênio”, contou ele ao Estadão em Paraty, onde participou da 22ª Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip.

“Graças a Machado, comecei a a compreender situações da região onde nasci, Popayán, no interior da Colômbia.” E a sofisticação da escrita machadiana o convenceu a acreditar que o Brasil teve o precursor de outro grande nome latino, o argentino Jorge Luis Borges.

Juan Cárdenas na Flip 2024. Foto: @WalterCraveiro

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Cárdenas traduziu também obras de Eça de Queiroz, João Gilberto Noll e Guimarães Rosa. Foi, portanto, quase impossível que a prosa desses clássicos não influenciassem sua escrita pessoal. É o que se percebe em O Diabo nas Províncias (DBA), romance hipnótico em que um acontecimento mágico aparece e convive de forma normal com a trama.

“A cozinha da minha escritura sempre foi a tradução com seu ritmo e sintaxe”, comenta ele na entrevista com o Estadão, iniciada justamente sobre esse assunto.

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Como o trabalho de tradutor influencia seu texto pessoal?

Interfere muito. A cozinha da minha escritura sempre foi a tradução, com seu ritmo, sua sintaxe. E a musicalidade de outras línguas contagia o meu próprio idioma. É algo parecido com o trabalho de um médium, ao sintonizar com as energias espirituais. E, quando é entranhada por outra, a sua língua se torna mais viva.

Autores de língua portuguesa, como Machado de Assis, Guimarães Rosa, Eça de Queiroz, foram ainda mais decisivos?

Sim, são um grande alimento. No caso de Guimarães, por vezes é frustrante. É incrível essa relação com um texto que é praticamente intraduzível. Já no início do trabalho, você sabe que não vai dar certo. Mas, apesar disso, essa impossibilidade é também importante.

E o que dizer de Machado?

O universo do Machado fica muito próximo daquele do lugar onde nasci e cresci, uma região na Colômbia marcada pelos traumas da escravidão. Aliás, como a organização política, social e econômica da região, por séculos, esteve ligada à estrutura de fazendas, ler Casa Grande & Senzala, do Gilberto Freyre, é como descobrir algo muito familiar para nós.

E, com Machado, um escritor brasileiro, comecei a compreender as minhas situações locais. Essa foi a primeira impressão. Anos depois, descobri a incrível sofisticação do Machado em termos do procedimento literário.

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Sempre digo que o Brasil teve um Jorge Luis Borges antes do surgimento do próprio Borges. Veja Memórias Póstumas de Brás Cubas: é um texto que, por baixo das curvas, é cervantino ao jogar com os planos da realidade. Ele simplesmente atualizou a técnica de Cervantes no século XIX. Machado foi um gênio da escrita.

E sua obra desperta interesses de leitores surpreendentes, como o comediante Woody Allen

Ele atinge vários povos em diferentes épocas. Mesmo um cara chato como o crítico Harold Bloom, que não não conhecia a literatura latino-americana, era grande admirador de sua obra. Isso é prova inconteste de sua genialidade

Juan Cárdenas na Pousada da Marquesa, em Paraty-RJ. Foto: Ubiratan Brasil/Estadão

Em sua obra, como como consegue conciliar acontecimentos fantásticos com fatos corriqueiros, sem que um não contraste com o outro?

Curiosamente, foi um escritor brasileiro que me deu a chave para entender a oposição falsa da abstrata, entre realidade e fantasia. Quando traduzi Hotel Atlântico, de João Gilberto Noll, logo no começo eu me deparei com uma situação totalmente cotidiana, normal, que se transforma em algo completamente estranho. E sempre no plano da realidade, Noll não faz um corte para introduzir o fantástico. Com isso, a percepção da realidade se torna muito mais profunda, rica. É mesmo que entrar no mistério profundo das coisas visíveis sem desvelar nada.

Você acredita que a literatura está dando conta da realidade de hoje, tão complexa e acelerada?

A literatura faz o que pode. Hoje vivemos uma realidade com mudanças constantes, difícil saber o que poderá acontecer nos próximos dez anos

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Seria o mal um aliado da literatura?

Não vejo os escritores como vampiros à espera do mal para alimentar sua obra. Claro que não faltam problemas, especialmente na América Latina, mas somos tropicais - não pessoas despreocupadas com a vida, hedonistas, mas que sabem viver bem e corretamente sob o sol

O avanço da tecnologia pode facilitar o trabalho dos escritores?

Não me preocupo com os avanços tecnológicos porque a Inteligência Artificial comprova que as máquinas sabem cada vez mais de tudo. E, na literatura, é melhor não saber de tudo. Daí a vantagem humana. A fantasia é muito importante hoje, assim como a projeção do desejo. Também acredito que as imagens são muito importantes. Estão vivas. São seres vivos.

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