A data de 2 de dezembro de 2015 está cravada na trajetória da escritora Nélida Piñon. Naquele dia, ela foi informada pelo seu oncologista de que um câncer devorava suas entranhas, o que lhe deixaria mais seis meses de vida – nove, no máximo. Apesar de impactada, ela voltou para seu apartamento, na Lagoa, no Rio, e, relativamente serena, começou a organizar a própria morte.
“Preparei uma lista de recomendações, que incluíam desde as músicas que seriam apresentadas em meu velório até a decisão de não ser enterrada vestindo o fardão da Academia Brasileira de Letras”, lembra Nélida, esbanjando saúde aos 82 anos, em uma conversa por telefone com o Estado.
Sim, porque, meses depois, um diagnóstico mais preciso mostrou que a autora não padecia de nenhum mal fatal. Mesmo assim, ela continuou escrevendo um diário em que costurou reminiscências ao mesmo tempo que refletia sobre a arte da escrita. A união desses textos resultou em Uma Furtiva Lágrima (Record), livro que tanto traz memórias como faz a defesa da liberdade criadora. “Sou alguém que tem o hábito de criar, de pensar. É consequência da minha própria existência.”
A experiência de estar próxima da finitude – o que seria terrível para muitos – serviu para que a escritora se posicionasse diante da vida. “Percebi que estava mais habilitada para a morte. Lamentei apenas os livros que deixaria para trás, e também não continuar com meus propósitos de ofício literário. Mas organizei a vida que estava prestes a terminar. Quando superei o falso diagnóstico, senti as mudanças que se operavam em mim. Percebi que nunca mais se é a mesma pessoa. O convívio com a morte representou uma transformação: é talvez a grande metamorfose da vida.”
Outra das recomendações médicas que Nélida recusou com veemência, na fase em que ainda acreditava estar doente, foi se separar de seus bichinhos de estimação, especialmente o cãozinho Gravetinho Piñon, que Nélida amou profundamente durante os 11 anos de convivência. Chama-se Gravetinho Amado, aliás, o último texto do livro – escrito em 5 de julho de 2017, narra uma dor profunda pela morte, naquele dia, do companheiro. “Ele importava mais que as glórias literárias, que certos bens que não me davam crédito. Eu já sabia que o amor é tudo. Ele era tanto. Era a alegria da casa”, anotou a autora, em um raro momento de escrita desbragada.
Mais que o rascunho de um testamento artístico, Uma Furtiva Lágrima é uma coletânea de reflexões que miram o futuro, não apenas o passado. Ao relembrar a aventura do avô Daniel, por exemplo, que deixou a Galícia, na Espanha, para arriscar a sorte no Brasil, Nélida Piñon menciona desbravadores históricos para pensar sobre as eternas movimentações humanas. Ou ainda, ao relembrar a infância em Vila Isabel, na zona norte do Rio, considerado “seu feudo espiritual”, a escritora argumenta sobre o vanguardismo possibilitado por essa mistura de experiências. “Sou mulher, brasileira, escritora, cosmopolita, aldeã, criatura de todas as partes, de todos os portos”, autodefine-se.
Nascida no Rio em 1937, filha de uma brasileira e um espanhol, Nélida foi a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras, na qual ingressou em 1989. Autora de A República dos Sonhos (1984), sobre o êxodo dos emigrantes galegos, e Guia Mapa de Gabriel Arcanjo (1961), que começou a escrever aos 10 anos e marcou sua estreia literária, Nélida passou muitos anos lendo o livro sagrado dos muçulmanos e estudando a história e a mitologia dos povos do Islã para escrever Vozes do Deserto (2004). “Busco, em minha obra, cobrir o repertório humano. Tenho a pretensão de falar com a voz coletiva, pois o escritor tem as vozes do mundo, o que lhe permite encarnar uma voz mais fidedigna.”
De fato, à frente do grupo dos autores contemporâneos que têm a escrita como testemunho da vida, Nélida sabe que utiliza a escrita para contar uma história, a própria história. Constrói, assim, uma carreira com um estilo elegante, ecos machadianos e um permanente estado de espírito que permite manipular a escrita com firmeza e serenidade.
“Enquanto escrevia o diário que resultou no livro, coloquei em pauta minha visão teatral do mundo – desde menina, frequento o palco, onde tudo é possível”, comenta. “A humanidade sempre recorreu à arte para se definir.” Nesse desenrolar do novelo memorialista, Nélida enumera fatos e amigos queridos. Fala, por exemplo, com carinho da poeta portuguesa Natália de Oliveira (1923-1993), que aliou o fazer cultural com uma carreira política, na qual defendeu os direitos das mulheres. “Ninguém controlava sua indomável fúria, além de ser ciumenta em relação às amizades – eu precisava esconder, por exemplo, que tinha almoçado com Sophia de Mello (Breyner Andresen, outra grande poeta portuguesa)”, diverte-se.
É tocante também o carinho revelado pela outra dama da literatura brasileira, Lygia Fagundes Telles, citada em pelo menos três textos de Uma Furtiva Lágrima. “Carmen Balcells (agente literária de renome internacional) dizia que eu era uma grande amiga de outros escritores por justamente não ter inveja do sucesso alheio”, justifica ela, que narra o divertido (e tenso) momento em que esperava pelo voto de Lygia em sua eleição para a Academia Brasileira de Letras: a amiga decidiu viajar de ônibus até o Rio, a fim de participar pessoalmente.
Se foi erroneamente desenganada há quatro anos, hoje Nélida se mantém na ativa: prepara um livro com artigos sobre a arte narrativa e outro, mais delicado, em que revela seu amor pelo cão Gravetinho. “Há anos, digo algo que surge de uma crença absoluta e nada relativa: sou escritora 24 horas por dia.”
UMA FURTIVA LÁGRIMA Autora: Nélida Piñon Editora: Record (320 págs., R$ 49,90)
Leia um trecho de Uma Furtiva Lágrima
“Retornei à casa, disposta a me preparar. No meu quarto, Gravetinho pressente minha vulnerabilidade. Ainda que sua natureza não domine meu mistério, ele intui que, segundo parecer médico, estou à beira da morte. Uma cercania impiedosa.
Com ele e Suzy ao meu lado, como se me protegessem, dou início ao diário da morte. Como sua única redatora. Ninguém está autorizado a acrescentar o que seja. A palavra que se atreva a adicionar envenenaria o final da minha vida.
Minha morte não é inspiradora, não pode ter traços poéticos, emenda ou salpicos metafóricos. Não há poesia na morte. Os lances que adornam a beleza eu os alijei. Não quero próximos. Condeno quem formule o que jamais pensei, ou sequer mencionei.
Ao atrelar a imaginação ao pensamento desregrado, mas sem punição, tudo se cruza, a partir desse instante, com a ideia da partida. Sou mortal. A mortalidade se avizinha, prova que a vida é breve.
Sucumbo, porém, sem protestos. Sem emitir sons que soem a despedida. Ou confessar de que não me ufano da morte. Sem pedir que me cubram com a mesma mortalha da mãe.”
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