Elena Ferrante pode ser um karma na vida de Domenico Starnone. Um dos melhores escritores italianos da atualidade, laureado com o Prêmio Strega, Startone ora é apresentado como marido de Elena Ferrante, ora como avatar da própria escritora napolitana. Sabe-se que Startone, nascido em Nápoles em 1943, é casado com a tradutora Anita Raja, também apontada como a verdadeira identidade de Elena Ferrante. Seja quem for, Elena Ferrante é o pseudônimo de uma misteriosa escritora (ou seria escritor?) responsável por livros notáveis, entre os quais a famosa tetralogia napolitana, série às vezes identificada pelo título do primeiro livro, A Amiga Genial.
Poucos conhecem a identidade secreta de Elena - e Startone provavelmente é um deles. Ela, ou ele, se comunica com o mundo por e-mails. Dá entrevistas, recebe e agradece homenagens, comenta adaptações de sua obra ao cinema ou a séries de TV. Não é uma escritora isolada, à maneira de Thomas Pynchon ou J. D. Salinger. Apenas se esconde atrás de um pseudônimo e justifica-se dizendo que não deseja ser um obstáculo entre a obra e seu público. Ambos - livro e leitor - devem comunicar-se de forma direta, sem interferência de intermediários, como o autor.
Tal anonimato autoimposto também já foi tachado de “golpe de marketing”, tamanha a curiosidade despertada. A tal ponto que um jornalista supostamente resolveu o enigma ao fuçar os rendimentos do casal Startone-Raja. A renda da dupla subiu à estratosfera ao mesmo tempo em que A Amiga Genial bombava entre os mais vendidos em dezenas de países. Com o lucro da longa história entre Lenu e Lila, da infância à velhice, o casal teria enriquecido e comprado vários imóveis suntuosos na Itália.
Enfim, são suposições. O fato é que Elena Ferrante é uma persona oculta e Domenico Startone uma figura pública. Ambos napolitanos, ambos vozes literárias poderosas, com estilos de escrita bastante acessíveis, mas que, em sua apenas aparente simplicidade, expressam a profundidade e as contradições das personagens em suas relações familiares. Conflitos entre marido e mulher, pais e filhos, o casamento como problema, os parentes distantes e próximos, o amor, o sexo, a solidão, a experiência da velhice - tudo isso, e muitas coisas mais, aparecem com incomum vivacidade nas páginas de Elena Ferrante e Domenico Starnone.
Obras paralelas
Podemos achar que são obras paralelas - e mesmo parecidas, sendo uma o contraponto da outra. Elena, a voz feminina, Domenico, a masculina, num jogo de heterônimos que lembra um pouco a estratégia literária de Fernando Pessoa e as diversas vozes que habitavam o poeta português.
Por exemplo, Dias de Abandono, de Ferrante, pode remeter a Laços, de Startone. Ambos começam com a voz dolorida de uma mulher, deixada pelo marido por outra mulher, mais jovem. Olga, a personagem de Dias de Abandono enfrenta a dor da partida de Mario despedaçando-se emocionalmente, e com todo o rigor, até ser capaz de alguma reconstrução.
Já em Laços, de Startone, há uma experiência multifacetada e ainda mais complexa. Dividido em três partes, o romance começa com a voz feminina, clamando para que o marido volte. No segundo segmento, a voz masculina assume a narração, dando a entender que a ruptura fora temporária e o casal seguira junto, vida afora. Na terceira parte, é a vez dos filhos, em especial da filha, Anna, que assume a narrativa e, com seu ponto de vista implacável em relação ao pai e a mãe, prepara um desfecho surpreendente.
Como se vê, Elena Ferrante e Domenico Starnone debruçam-se sobre a experiência da família nuclear, do casal e dos filhos. Não o fazem com olhar idealizado, muito pelo contrário. Também não tratam de famílias “disfuncionais”, no sentido mais estrito do termo. Sua “disfuncionalidade”, digamos, faria parte da ordem estabelecida. O “normal” seria essa disfuncionalidade de ordem estrutural, contida nas complexas entrelinhas afetivas do arranjo humano de reprodução da espécie. De certa forma, Ferrante e Starnone levam ao limite as famosas palavras iniciais de Anna Karenina, de Tolstoi: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Não existem famílias felizes na literatura de Starnone e Ferrante. Cada uma delas exibe sua singularidade nesse complexo bordado humano feito de linhas felizes e infelizes.
As narrativas não são atemporais ou falsamente universais. Debruçam-se sobre a realidade italiana, napolitana em particular, em diversas épocas, e procuram dar conta, por meio dos personagens, das mudanças sofridas por esta sociedade. Na tetralogia napolitana, Ferrante mostra o significado de ser do sexo feminino numa sociedade machista como a napolitana dos anos 1940 e 1950 (as personagens Lenu e Lina nascem em 1944). O desafio das mulheres é se afirmarem como seres independentes e singulares num mundo que lhes prescreve submissão e papéis rigidamente assinalados como donas de casa e mães de família. Lenu e Lila adotarão estratégias diferentes para driblar esse patriarcalismo rudimentar.
Homem fragilizado
Já Starnone, ao adotar o ponto de vista masculino, fala não do homem triunfante, mas do macho triste e decadente da nossa era, fragilizado diante de um mundo que não é mais o seu e no qual ainda não encontrou seu novo papel.
Impossível, por exemplo, ler Laços sem se dar conta da fragilidade do protagonista Aldo, que após uma aventura com a jovem Lidia, volta em posição subalterna para a esposa Vanda.
Ou, mais ainda, em Assombrações, no qual o artista gráfico Daniele Mallarico, residente em Milão, volta de visita a Nápoles para tomar conta do neto de quatro anos enquanto sua filha e genro vão a um congresso de matemáticos na Sardenha. Aqui, a queda do macho soma-se a outro fator de fragilização, a velhice. Aos 75 anos, Daniele sente-se fraco por causa de uma cirurgia recente e decadente em sua profissão. Viúvo, mal suporta o peso dos anos e das recordações pouco felizes do casamento com Ada. Retornar à casa de sua infância é reencontrar os fantasmas do seu passado. Que, curiosamente, assumem a forma de uma criança especialmente dotada e ameaçadora. Vale dizer que o trabalho atual de Daniele é ilustrar uma edição de luxo de um conto de fantasmas de Henry James, The Jolly Corner. Foi traduzido como A Bela Esquina por José Paulo Paes na coletânea de contos de James Até o Último Fantasma (Cia das Letras).
Em Segredos, obra mais recente de Starnone traduzida em português (por Maurício Santana Dias para a Todavia), o formato em três partes é mantido. O protagonista Pietro fala do seu amor por Teresa, sua aluna “mais animada”, nas palavras do professor. Para selar a aliança, o casal troca confidências extremas. Cada um conta o pior segredo sobre si mesmo que, se revelado, seria capaz de arruinar uma vida. O pacto não dá lá muito certo e a história prossegue com o casamento de Pietro com Nádia. Com um salto gigante no tempo, a narrativa passa a Emma, filha de Pietro, às vésperas de uma cerimônia em que o pai, velho e ilustre professor e escritor, será homenageado. Apesar disso, a figura tutelar será sempre a misteriosa Teresa, “minha consorte fantasmática”, como Pietro a define.
Sim, mesmo ao adotar o ponto de vista masculino, em geral são mulheres as figuras mais marcantes na obra de Domenico Starnone. Os homens parecem conduzir a vida mas são, de fato, conduzidos, e por mãos femininas. Não se trata de luta dos sexos, briga pelo poder ou outras platitudes do gênero. Apenas registro de que as placas tectônicas do relacionamento humano se movem e alteram posições, abrindo um abismo até que novo arranjo seja encontrado. Nesse sentido, as obras de Elena Ferrante e Domenico Starnone, sejam quem forem ela e ele, completam-se à maneira de espelhos que se miram reciprocamente e de maneira invertida.
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