PUBLICIDADE

Duas biografias de Fernando Pessoa criam confronto de autores e ‘guerra civil literária’ em Portugal

Novos livros, com cerca de mil páginas cada um, levaram os autores João Pedro George e Richard Zenith a acusações de plágio e polêmicas sobre a política e os relacionamentos do poeta; entenda

PUBLICIDADE

Por Paulo Nogueira
Atualização:

Fernando Pessoa morreu em Lisboa em 1935, aos 47 anos, numa relativa obscuridade, tendo publicado só um livro. Em menos de um século, porém, Pessoa se instalou no cânone universal e hoje é o escritor português mais traduzido no mundo. Apesar disso, durante 70 anos não surgiram em Portugal novas biografias dele. Até que, no final do ano passado, saíram duas quase ao mesmo tempo. A primeira (1136 páginas) foi Pessoa: Uma Biografia, de Richard Zenith (publicada no Brasil pela Companhia das Letras). O autor é americano, desembarcou em Lisboa em 1987 e ficou até hoje, naturalizando-se português. No final de 2022, é lançada O Super-Camões (960 páginas; disponível na versão portuguesa em e-book), de João Pedro George.

PUBLICIDADE

As duas biografias acabaram gerando um embate entre os autores, com acusações de plágio e polêmicas sobre a política e os relacionamentos do poeta.

Pessoa nasceu em Lisboa em 13 de junho de 1888. Quando tinha cinco anos, o pai morreu e a mãe se casou novamente, com o cônsul português em Durban, na África do Sul, onde Pessoa viverá dos 8 aos 17 anos. Em 1905, Pessoa volta para Portugal. Entrará em conflito com o ditador António Salazar, que governará o país durante 40 anos. A doutrina de Salazar era tacanha: a nação-aldeia. Um sintoma foi a proibição da Coca-Cola, então novidade mundial. Pessoa, improvisado em publicitário, acabara de cunhar um slogan para a exótica Coca-Cola: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”. Salazar, embora abstêmio, encorajava o consumo do vinho, pela importância econômica do produto: “Beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses.”

O poeta português Fernando Pessoa Foto: Wikimedia Commons

A peculiaridade de Pessoa são os heterônimos, que se distinguem de pseudônimos por terem obra e biografias individuais – alter-egos de um ego, personagens que são autores. Foram dezenas: o primeiro brotou quando Pessoa tinha seis anos. Os principais são Alberto Caieiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis.

Duas biografias e um desassossego

Pois bem: estamos em 26 de fevereiro de 2023, e as biografias de Zenith e George convivem pacatamente nas livrarias. Naquele dia, a casa cai. Com manchete primeira página, o Expresso, o mais influente jornal português, publica um texto: “O Desassossego de Uma Biografia”. Nele, Zenith informa que, folheando o livro de George, descobriu que tinha sido uma inspiração abundante - mas não creditada. A palavra “plágio” não é proferida, mas se fala em “semelhanças flagrantes”. Zenith se queixa (“Era só incluir umas notas de rodapé!”) e aponta erros fatuais em “O Super-Camões”, “fruto da pressa com que o livro foi feito”. George refuta qualquer pilhagem, e revida com chumbo grosso, afirmando que ao chegar a Portugal o americano “descobriu o petróleo pessoano”. Que a edição, prefácio e tradução de Zenith para o inglês de “O Livro do Desassossego” vampirizou a edição anterior da especialista lusa Teresa Sobral da Cunha, sem mencionar a fonte.

Duas biografias de Fernando Pessoa chegam às livrarias portuguesas mais ou menos ao mesmo tempo; apenas a de Zenith foi publicada no Brasil Foto: Reprodução/Estadão

Além da ‘inspiração’, sobre o que eles discordam?

FP, embora um poeta cerebral (Carlos Drummond de Andrade reclamou disso), não se enclausurava numa torre de marfim e era apaixonado pela política. Zenith e George discordam sobre as ideias de FP quanto ao colonialismo e ao racismo. Segundo Zenith, no ginásio de Durban o menino aprendeu a “ridicularizar aqueles que não eram brancos como ele e todos os outros da escola”. O biógrafo cita uma piada de Pessoa sobre uma prova escolar: “Além dos zulus, quais são as principais espécies de gado em uso na África do Sul?” Diogo Ramada Curto, historiador luso e autor de “O Colonialismo Português em África”, duvida que a “brincadeira de mau gosto” ateste o racismo do garoto: “Pode até ser vista como uma caricatura das posições dos professores e da missão civilizadora dos europeus”.

Poeta virgem?

Sobre o sexo, Zenith diz que “Pessoa quase com certeza morreu virgem”. Com sua exuberante ferocidade, o romancista português Antônio Lobo Antunes há anos já resmungara sobre Pessoa: “Eu me pergunto se um homem que nunca fodeu pode ser um bom escritor”. Mas um amigo do poeta entrega: “Um dia fomos a um bordel lisboeta. Fernando não nos acompanhou. Porém descobri que frequentava o bordel e até nele tinha uma apaixonada. Se nos tivesse acompanhado se descobriria a sua vida privada, que era sagrada.” Zenith considera essa fonte pouco confiável.

Publicidade

Por incrível que pareça, outra controvérsia diz respeito... ao tamanho do pênis do pobre poeta. Diz Zenith: “Tanto Botto como Leal afirmaram que Pessoa tinha um pênis pequeno, o que não quer dizer que o tenham visto alguma vez nu. ‘Quando se olhava para a virilha dele’, explicou Leal, ‘não se conseguia ver nada’.” Como a moda na época eram calças largas e folgadas, talvez os genitais líricos só fossem evidentes se – como diria Mae West – o poeta estivesse muito entusiasmado. João Pedro George alfineta: “O que seria se, na biografia de uma escritora famosa, se discutisse o tamanho dos seus seios ou o aspecto da sua vagina?”

Uns amores de Pessoa

FP escreveu poemas homoeróticos explícitos, e panfletos em defesa dos poetas gays Antônio Botto e Raul Leal, atacados por sectários que chegaram a queimar suas obras. Para Teresa Rita Lopes, “se Pessoa não saiu do armário, é porque não estava lá dentro. Não teria problemas em assumir, já que defendeu seus amigos gays”. FP até editou livros de Botto e Leal – deste, “Sodoma Divinizada”.

A única relação amorosa comprovada de Pessoa foi com uma mulher. Conheceu Ofélia Queiroz no dia em que ela candidatou-se como datilógrafa na firma em que ele colaborava – e se embeveceu com a jovem de 19 anos. Influiu na contratação dela e acolheu-a no primeiro dia de expediente. Pessoa enviou a Ofélia cerca de 60 cartas, e recebeu mais ainda. Um mês antes de morrer, FP escreveu “Todas as Cartas de Amor São Ridículas”, como Álvaro de Campos . Nesse caso, Campos tem razão: as cartas estão infestadas de expressões bregas (“bebezinho”, “meu anjinho”). Só faltou o circunspecto Pessoa flanar por Lisboa fazendo aqueles coraçõezinhos bobos com as mãos. FP foi um namorado convencional daquela época: “Fernando era muito ciumento, mas não dizia nada; sofria. Não gostava que eu usasse decotes, nem falasse com rapazes.”

Retrato de Ofélia, musa de Fernando Pessoa Foto: Acervo Estadão

Ele conjectura casar com Ofélia, mas “resta saber se o lar combina com minha vida de pensamento.” Em 11 de janeiro de 1930, envia-lhe a última carta. Em 1985, os restos mortais de Pessoa foram trasladados para o Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa, onde repousam ao lado Vasco da Gama e Camões. Já o corpo de Ofélia, por ironia da história, descansa na necrópole lisboeta chamada Cemitério dos Prazeres.

Lugares de falas

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

As discrepâncias sobre “a verdadeira identidade” de Fernando Pessoa são exacerbadas pela multiplicidade dos heterônimos (mais de 70). Mas a polêmica ensina outra lição valiosa: a relação entre a vida e a obra de um escritor nunca é simples. A vida não explica inteiramente a obra, e a obra tampouco explica inteiramente a vida. Não é só que na grande literatura não há “lugares de fala” – é que nela todos os lugares são de fala. Exercendo uma das mais admiráveis virtudes humanas (a empatia), um autor é um ventríloquo universal. Como assumiu Flaubert, “madame Bovary sou eu”. Recusando-se a se encarcerarem em gaiolas unidimensionais, há escritores que escreveram como se fossem um cão ou um gato, ou como fantasma, como marciano ou um caruncho, como Deus ou o Demônio. Em Pessoa, tudo era destilado, refratado e sublimado pela literatura, um labirinto de espelhos que nunca refletia apenas seu umbigo. Como na peça de seu conterrâneo Gil Vicente, na sua obra FP era todo mundo e ninguém.

Os luxos do poeta eram os ternos (cada vez mais puídos, mas elegantes – um dândi chaplinesco), quatro maços de cigarro por dia e doses gorgolejantes de álcool (embora nunca ninguém o tenha visto de porre). Um dia, consultou o psiquiatra Egas Moniz, Nobel de Medicina em 1949 – que se tornará um constrangimento para os portugueses, devido ao motivo do prêmio: a invenção da lobotomia. O médico prescreveu-lhe exercícios físicos, e FP frequentou uma academia durante três meses – ah, imaginar Pessoa malhando...

Nos últimos tempos, sofreu com cólicas e febre. O médico alertou-o: tinha de parar de beber. No dia 29 de dezembro de 1935, foi hospitalizado com uma crise hepática. No leito de morte, pediu papel e lápis e rabiscou em inglês as últimas palavras: “I know not what tomorrow will bring” (não sei o que o amanhã trará).

Publicidade

E no que as biografias concordam?

Se tem algo em que as duas biografias concordam é que FP não se encaixa no clichê do gênio coitadinho. Diz George: “Pessoa era sociável, e como todos nós com momentos de solidão e de tristeza. Mas tinha senso de humor”. Como na foto que enviou a Ofélia, com ele em um bar emborcando um copo de vinho e a dedicatória trocadilhesca: “Fernando Pessoa em flagrante delitro”.

FP até deixou instruções irônicas aos seus biógrafos: “Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,/Não há nada mais simples/Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte./Entre uma e outra todos os dias são meus.” Mas FP, um ser afável, talvez reconciliasse Zenith e George à sua maneira: “Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade./Assim, como sou, tenham paciência!/ Vão para o diabo sem mim, / Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! /Para que havemos de ir juntos?”.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.