Nunca se falou tanto em tolerância, mas será que nossas sociedades estão suficientemente preparadas para exercê-la? No momento em que o atentado ao Charlie Hebdo completa o seu triste aniversário de um ano, a pergunta ressurge. E se torna ainda mais oportuna quando saem no Brasil dois livros de Stéphane Charbonnier, o Charb – editor do Charlie e um dos mortos no atentado terrorista. O primeiro é uma coletânea de crônicas e desenhos produzidos entre 2009 e 2014 (Pequeno Tratado da Intolerância, tradução de Jorge Bastos, Planeta, 288 págs.). O segundo é Carta aos Escroques da Islamofobia que Fazem o Jogo dos Racistas (tradução de Sara Spain, Casa da Palavra, 96 págs.), texto que Charb acabou de escrever em 5 de janeiro de 2015, apenas dois dias antes do atentado ao jornal.
A tradução brasileira da coletânea omite o título original: As fatwas de Charb – palavra que originalmente significava um parecer ou sentença final, emitida por uma autoridade, que esclarecia alguma passagem ambígua dos livros sagrados, mas que acabou se deturpando como “sentença... de morte”. A crônicas humorísticas de Charb invertem completamente o esquema dos manuais: é um Voltaire às avessas, que ensina e prega a prática da intolerância mais radical, começando todas suas crônicas com o bordão “Morte a...” e terminando-as com um “Amém”. É o politicamente correto elevado ao máximo do histrionismo nervoso, beirando o patológico, já que seus alvos, por si mesmos, são risíveis: “morte aos chinelos de dedo”; “aos carecas de peruca”; “à bola de sorvete de baunilha”; “aos óculos descolados”. São poucas as crônicas que se dirigem a alvos específicos, como a hilária “Morte aos bigodes do Bashar al-Assad” ou a sarcástica “Morte aos devotos sem fé”. Apesar da linguagem dura, cheia de cutiladas ferinas, prevalece sempre o tom da comédia, como na condenação aos gorros do Papai Noel, “que faz quem o usa” – escreve Charb – “parecer um duende reprimido”.
Todas as crônicas utilizam a estratégia de uma inversão irônica implacável, de um humorismo mordaz, mas demasiado sutil, a exigir do leitor um conhecimento refinado de todas as referências. A pegadinha na frase “Assad tenho Asma. Se não libertar o seu povo, eu uso a bomba” só é compreensível para quem sabe que Asma é o nome da esposa do ditador e a bomba, o salva-vidas portátil do asmático. O caldo em excesso da ironia, e seu correlato – o distanciamento – praticado por Charb – acaba por produzir um humorismo de risco, intrinsecamente ambíguo, talvez mal digerido pelos leitores de má vontade que sentirão apenas o sabor da agressão ou da calúnia. Mas existe humorismo que não seja ambíguo?
Já a Carta não tem nada de humorística e adota um tom de desabafo intenso e aguerrido. Sobram farpas para os escroques que inventaram a islamofobia: o mundo político, que corteja as seitas por interesses eleitorais; o mundo cultural, que fomenta um ambiente tão relativista que tende a compreender o terror fundamentalista, incentivando-o; uma parte do mundo jurídico, que estimula contraditórios artificiais contra a blasfêmia, malbaratando o Código Civil francês; e até alguns setores da mídia, por velados interesses mercadológicos.
Ao relembrar todos os processos jurídicos que teve que enfrentar (todos deram em nada, pois contrariavam as leis francesas) como editor do Charlie Hebdo, Charb é enfático na defesa do mundo laico, num tom que lembra Voltaire, mas, agora não mais às avessas: “por que os crentes recorrem à justiça dos homens para nos punir, se a justiça divina o fará, e bem mais severamente do que qualquer juiz? Quem é afinal esse Deus, que afirmam todo-poderoso, mas que precisaria de advogados para nos processar? Será que Deus não se ofende ao constatar que aquele a quem até então considerava como bom crente recorreu à Justiça e não à oração?”.
Apesar dos exageros e das provocações mordazes, Charb é muito lúcido ao mostrar que o laicismo não é contrário à religião, mas, sim, contrário em transformar a religião em obstáculo para o exercício da liberdade, ameaçando o pluralismo e a diversidade.
“Nunca vi em minha vida um fanático com senso de humor nem nunca vi uma pessoa com senso de humor tornar-se um fanático, a menos que ele ou ela tenha perdido o senso de humor – que é, afinal a grande cura” – escreveu Amós Oz, no recente Como Curar um Fanático. Mas Oz não incluiu, na ampla galáxia dos procedimentos humorísticos, a modalidade irônica e sarcástica. Seja como for, embora ainda longe da melhor ironia humorística – anárquica, descompromissada, autoderrisória e que demonstra impossibilidade de um sentido claro e definitivo –, Charb nos deixou um manifesto póstumo, não resignado e contundente, de defesa da razão e da liberdade, esses dois baluartes daquilo a que antigamente costumávamos chamar de Iluminismo e que o próprio Voltaire, em sua época, considerava um projeto realizável, mas nem sempre desejável por nossas sociedades. Nosso maior receio é que Voltaire – que errou em muitas coisas – nesta talvez ele tenha acertado em cheio.CARTA AOS ESCROQUES DA ISLAMOFOBIA QUE FAZEM O JOGO DOS RACISTASAutor: CharbTrad.: Sara Spain. Editora: Casa da Palavra (96 págs.; R$ 34,90)PEQUENO TRATADO DA INTOLERÂNCIAAutor: CharbTrad.: Jorge BastosEditora: Planeta (288 págs.; R$ 39,90)* ELIAS THOMÉ SALIBA É PROFESSOR DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE 'RAÍZES DO RISO'
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