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Educadores se perguntam como ensinar a obra de Alice Munro após revelação da filha

Morta em maio, Munro foi acusada pela filha de ser conivente com abuso sexual cometido pelo padrasto

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Por Redação AFP (AFP)
A escritora canadense Alice Munro foi caracterizada pelo secretário da Academia Sueca Peter Englund como "mestre do conto contemporâneo". Ela é a décima terceira mulher a receber o prêmio. Após a morte, em 2024, porém, revelações familiares mudaram perspectiva sobre autora Foto: Divulgação

Durante décadas, Robert Lecker leu, lecionou e escreveu sobre Alice Munro, escritora canadense laureada com o Nobel e conhecida por seus contos. Professor de inglês na Universidade McGill, em Montreal, e autor de inúmeros estudos críticos sobre ficção canadense, ele considera Munro a “joia” da coroa da literatura de seu país e fonte de alguns dos materiais mais ricos para discussão em sala de aula.

Mas desde que soube que Munro se recusou a deixar o marido ao ter conhecimento de que ele havia agredido e assediado sexualmente a filha dela, Lecker agora se pergunta como falar sobre a obra da autora – ou se ele deveria sequer tentar.

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“Eu tinha decidido ministrar um curso de pós-graduação sobre Munro no inverno de 2025″, diz Lecker. “Agora tenho sérias dúvidas se me sinto eticamente capaz de oferecer esse curso”.

Andrea Robin Skinner, filha de Munro e James Munro, escreveu no Toronto Star no início deste mês que foi atacada aos 9 anos de idade pelo segundo marido de Munro, Gerard Fremlin. Ela disse que ele continuou a assediá-la e abusar dela nos anos seguintes e só perdeu o interesse quando ela chegou à adolescência.

Aos 20 anos, ela contou à mãe sobre os abusos de Fremlin. Mas Munro, depois de deixar Fremlin por um breve período, voltou e ficou com ele até a morte do companheiro, em 2013. Ela explicou a Skinner que “o amava demais” para continuar longe dele.

Quando Munro morreu, em maio deste ano, aos 92 anos de idade, ela era celebrada no mundo todo por suas narrativas que documentam uma visão rara dos segredos, motivações, paixões e crueldades de seus personagens, sobretudo de meninas e mulheres.

Os admiradores a citavam não apenas como uma inspiração literária, mas como uma espécie de guia moral, às vezes chamada de “Santa Alice”. Um ensaio publicado no New York Times logo depois de sua morte, escrito pela autora canadense Sheila Heti, trazia o título “Não escrevo como Alice Munro, mas quero viver como ela”.

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“Ninguém sabe das concessões e compromissos que outra pessoa faz, especialmente quando essa pessoa é tão reservada quanto ela e transforma suas provações em ficção”, escreveu Heti. “No entanto, seja qual for a verdade de sua existência cotidiana, ela ainda brilha como um símbolo de pureza artística”.

Educadores do Canadá e de outros países agora estão repensando a vida e a obra de Munro. A Western University, em Ontário, alma mater da escritora, publicou uma declaração dizendo que estava “reservando um tempo para considerar cuidadosamente o impacto” das revelações.

Desde 2018, a Western University oferece a Cátedra Alice Munro em Criatividade, com a missão de “liderar a cultura criativa da Faculdade de Artes e Humanidades, servindo como mentora e modelo”. Essa cadeira, ocupada por Heti no último ano acadêmico, ficará vazia enquanto “refletimos cuidadosamente sobre o legado de Munro e seus laços com a Western”, de acordo com a escola.

As solicitações de comentários aos agentes e relações públicas de Heti não foram respondidas de imediato.

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No semestre de outono da Universidade de Harvard, os autores e membros do corpo docente Laura van den Berg e Neel Mukherjee vão lecionar conjuntamente o curso “Leitura para escritores de ficção”, uma análise de obras literárias que vão desde a ficção científica de Octavia Butler até a ficção “realista” de Munro. Van den Berg, escritora premiada, cujos livros incluem a coletânea de contos The Isle of Youth e o romance State of Paradise, diz que o fato de Munro não ter apoiado Skinner a forçou a repensar sua abordagem para as aulas.

“Nunca mais lerei Munro da mesma forma e não a ensinarei da mesma maneira”, diz ela. “Para mim, o mais doloroso do que Andrea Skinner passou foi o silêncio. E sentir que ela só pôde quebrar o silêncio depois que a mãe se foi. Para mim, simplesmente ficar diante de um grupo de alunos e ler a palestra que eu tinha preparado originalmente seria como um segundo silenciamento”.

Uma ex-aluna de Lecker, Kellie Elrick, diz que ainda está tentando entender como pensar a obra de Munro. Os contos da escritora enriqueceram sua vida, diz, e ela não se arrepende de tê-los lido. Elrick, que está entrando em seu quarto ano na McGill, vê duas narrativas paralelas e “difíceis de conciliar”: “Munro, a escritora” e “Munro, a mãe”.

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“Acho que talvez seja tanto produtivo quanto perigoso ler a obra de alguém de forma biográfica”, acrescentou ela. “Isso nos leva (os leitores) a achar que podemos entender as coisas, mas tem coisas que nunca saberemos de verdade sobre a vida e as intenções dos escritores”.

Uma das histórias de Munro que van den Berg e Mukherjee planejam comentar nas aulas é “Amiga de juventude”, narrada por uma mulher há muito afastada da mãe, cujas “ideias estavam alinhadas com algumas noções progressistas da época dela, e as minhas ecoavam as noções da minha época”.

Mukherjee, finalista do Booker Prize em 2014 pelo romance The Lives of Others, não tem certeza de como – ou se – trabalhará com as recentes notícias sobre Munro ao falar sobre “Amiga de juventude”, que a autora dedicou à própria mãe.

Ele acredita em separar “a arte do artista, porque todos nós fizemos coisas ruins”. Ele se considera “muito em conflito” e compartilha do horror de van den Berg pelo fato de Munro ter escolhido o marido em vez da filha, mas também acha que a obra dela pode ter ganhado “mais profundidade agora que sabemos algo de sua vida com que ela deve ter tentado se reconciliar”.

“Não vejo os escritores como santos”, diz ele.

TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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