Contemporâneo de Lewis Carroll (1832-1898), mas nascido 20 anos antes, o escritor e desenhista inglês Edward Lear (1812-1888) exerceu tremenda influência sobre o autor de Alice no País da Maravilhas, tanto na escrita como no traço – e, principalmente, no uso do nonsense como força indutora de histórias extraordinariamente adoráveis. Exemplo disso é o livro Conversando com Varejeiras Azuis, que reúne pequenos contos, desenhos de espécies botânicas absurdas e receitas culinárias que nenhum chef assinaria, além dos seus populares limeriques (limericks) – poemas com rimas ‘nonsense’ em que a última linha é praticamente idêntica à primeira (e igualmente carente de sentido).
Desnecessário dizer que uma antologia tão maluca exige tal grau de liberdade que só mesmo uma tradutora com talento poético e cabeça nas nuvens poderia dar conta de Lear. Dirce Waltrick do Amarante era, naturalmente, a opção preferencial. Ela já traduziu outro livro do autor em seu bicentenário, Viagem numa Peneira, além de ser autora de um ensaio sobre ele (As Antenas do Caracol). Lear foi um autor marcado como um criador de histórias para crianças, que, de fato, adoravam seus limeriques, aparentemente construídos para o riso fácil. Anthony Burgess, o autor de Laranja Mecânica, recorreu a ele para criar as expressões de seus adolescentes transgressores, mas não concordava em reduzir a dimensão literária de sua obra à pura diversão. Para Burgess, Lear era um crítico severo da sociedade em que viveu, apoiando sua defesa num dos textos mais conhecidos do escritor, The Owl and the Pussycat, em que uma coruja e um gato se apaixonam e se casam com a bênção de um peru.
Burgess dizia que a coruja era a sabedoria e o gato, os sentidos. No final, prevalecia o instinto e o sexo, uma vez que ninguém jamais viu um felino casar com uma ave – assim, eles tiveram de escapar do mundo real para consumar a união, proibida pela natureza, observou. Considerando a ambiguidade sexual de Lear, é bem possível que a alegoria tivesse como alvo a hipocrisia da Inglaterra vitoriana, que mandava homossexuais para a prisão (isso foi norma até os anos 1960).
Em se tratando de nonsense literário, do qual foi o criador, Lear poderia ter usado sua historieta como metáfora das uniões transgressoras, mas buscar sentido lógico em seus textos pode levar o leitor a concluir que Lewis Carroll era um escritor realista. Lear é sobretudo engraçado, embora jamais perca a poesia de vista.
O conflito entre o indivíduo e a sociedade, observaram seus críticos, era mesmo o tema de sua predileção – e, não por acaso, os seus personagens são excêntricos e inadaptáveis à norma, sofrendo nas mãos da sociedade intolerante (um homem é linchado por caipiras e um gordo, apedrejado por crianças em uma de suas histórias).
Em Conversando com Varejeiras Azuis, a prova dessa crueldade está logo no conto de abertura, A História de Quatro Criancinhas Que Deram a Volta ao Mundo, antítese da literatura infantil edificante do século 18. As quatro criancinhas do título – Violeta, Stilingue (Sligsby, no original), Guy e Lionel – decidem viajar pelo mundo de barco, aportando em ilhas desertas ou repletas de papagaios, até que topam com a ilha das varejeiras azuis, das quais se tornam amigos.
No fim, o barco é destruído por um peixão e eles são resgatados por um rinoceronte – impossível não pensar em Ionesco, o patafísico dramaturgo romeno, pai do teatro do absurdo e autor de Rhinocéros (1960). Ionesco preferia a palavra “insólito” para descrever sua dramaturgia. Talvez o termo se aplique igualmente a Lear. Com a diferença que muitos dos personagens do escritor inglês têm um fim trágico.
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