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Elizabeth Bishop: biografia aborda relação da poeta com o Brasil

Livro de Thomas Travisano aborda infância sofrida, chegada ao Brasil e período da ditadura na vida da contraditória escritora

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Por Paulo Nogueira

Quando se trata de escrever a biografia daquela que é a maior poeta em língua inglesa do século 20, Thomas Travisano é a pessoa certa no lugar certo. Já em 1988 lançou uma obra hermenêutica sobre a autora, e foi o fundador da Elizabeth Bishop Society. Só não digo que Travisano encerrou o assunto porque há muita munição inédita disponível. Bishop era uma correspondente gorgolejante: a primeira coletânea de suas cartas tem 670 páginas, mas ainda restam 121 caixas de documentos dela no arquivo da Universidade de Vassar (fora correspondências já publicadas, com os poetas Robert Lowell e Marianne Moore e os editores da New Yorker).

Travisano teve uma mãozinha nos próprios versos de Elizabeth Bishop (1911-1979) (EB), de índole autobiográfica, embora não confessional. Neles, a poeta destilou sua vida com melancolia, humor e uma compreensão quase perfeita de suas próprias forças e deficiências, e de sua relação com o mundo. Nos 101 poemas editados durante sua existência, naquele jeitinho reticente, ela demonstrou que – como Baudelaire – era contraditória porque continha multidões.

Reprodução de foto de Elizabeth Bishop Foto: Arquivo Estadão (1956)

A reserva de EB devia-se em parte a sua sexualidade, ainda quase um tabu naquela geração (ela morreu em 1979). Lésbica, a poeta se refere a amantes como “amigas”, apesar de ter vivido abertamente com parceiras nos EUA e no Brasil. E disse a um amigo: “Sabe o que eu quero? Armários e mais armários”. Mas a própria natureza dela era contemplativa, e, não obstante toda a eventual sofrência, na sua poesia é como se Elizabeth fosse sempre a adulta na sala – com compaixão, mas sem pieguice.

Sofrência

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Botemos sofrência nisso. Perdeu o pai aos oito meses, e a mãe enlouqueceu quando ela tinha cinco anos (a filha nunca mais a viu). Separada dos avós que amava, foi abusada por um tio, e desenvolveu TEPT (Transtorno de Estresse Pós-Traumático), que ditou somatizações e doenças crônicas como asma, eczema, alergias, depressão e alcoolismo. Não espanta que biografias anteriores tenham pavoneado EB no pedestal do martírio e reduzido sua obra a um fetiche do suplício, mórbido mas com glamour.

E é aí que Travisano chega chegando, com uma perspectiva nova: EB nunca se viu como uma coitadinha. OK, ela comentou com Lowell que seu epitáfio deveria ser: “a pessoa mas solitária do mundo”. Porém, preferiu a inscrição jocosa que consta no seu túmulo: “Medonha, mas animada”. Deu e recebeu amor, teve amigos fiéis e duradouros e reconhecimento prestigioso. Nunca passou por apuros financeiros – nada mau para uma poeta (e -mas já aos 50 anos - professora de literatura em Harvard).

Fora as viagens – EB viajou mais do que necessaire de aeromoça. E não apenas em busca de um “lar” metafísico, mas sobretudo por aventura, risco, inspiração, descoberta e liberdade. Quando ela pôs o pé no estribo, aliás, pioneiras ocidentais – como as antropólogas Margaret Mead e Ruth Benedict – já tinham batido perna e desbravado o caminho.

Chegada ao Brasil

EB desembarcou em Santos sozinha em 1951, aos 40 anos. Descreveu o que viu, naquela dicção entre o elegíaco e o sardônico: “Eis uma costa; eis um porto;/após uma dieta frugal de horizonte, uma paisagem:/morros de formas nada práticas, cheios – sabe? – de autocomiseração”. O Brasil era só uma breve escala de uma circumnavegação, passando pela Terra do Fogo e regressando como um bumerangue aos Estados Unidos, via Pacífico. Acabou ficando quinze anos.

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A culpa foi de um caju e de uma mulher. Esta era Lota Macedo Soares, uma espécie de princesa renascentista contemporânea, parça de artistas nacionais (Portinari, Manuel Bandeira, Clarice Lispector, Burle Marx) e importados (Alexander Calder). Abastada e avançada, Lota dirigia um Jaguar vermelho (Michel Foucault também teve um, só que amarelo), e participou de provas com a lendária pilota francesa Hellé Nice. Diletante talentosa, Lota construiu uma casa ultramoderna nas cercanias de Petrópolis – a edênica Samambaia, cujo projeto foi premiado numa Bienal de São Paulo (Walter Gropius, da Bauhaus, fazia parte do juri).

Capa do livro 'Um Porto para Elizabeth Bishop', com foto da escritora ao fundo.  Foto: Editora Terceiro Nome

Lá, EB provou um caju, com uma reação alérgica catastrófica – sua cabeça ficou do tamanho de uma abóbora e, se o inchaço atingisse a traqueia, seria fatal. Lota cuidou dela, e a poeta derreteu-se – foi o Dia do Fico. ‘’Parece que morri e fui para o céu sem merecer.’’ Naquele santuário estético empoleirado na serra fluminense (“O pior lugar para se entregar um piano!”), a americana sentiu-se ‘’quase como Rilke’' – afinal, o poeta compõs as Elegias de Duíno no castelo da princesa Marie von Thurn e Taxis, na costa do Adriático. Numa carta para Lowell, EB comentou; ‘’A sociedade do Rio de Janeiro é inacreditável. Proust nos trópicos, com um samba em vez da frasezinha de Vinteuil”.

1964

Incumbida pelo governador Carlos Lacerda do projeto do Aterro do Flamengo, Lota decidiu criar um Central Park tropical. Para aterrar a área, o morro de Santo Antônio foi desmanchado a jatos d’água. Para engendrar a praia, retirou-se areia do fundo do mar, com a mesma draga que abriu o Canal do Panamá. Depois do golpe de 1964, Lacerda sonhou com a presidência da República – Lota foi junto. A ilusão durou pouco, com a institucionalização da ditadura e a cassação de Lacerda. O regime militar proibiu qualquer reconhecimento de Lota no projeto do Aterro do Flamengo.

A sensibilidade política de Bishop era mais libertária e cultural do que ideológica. Recusava-se a participar de coletâneas de “poetas mulheres”, considerando-as uma segregação que diminuía a condição feminina: “Por acaso existem antologias de ‘poetas homens’?” Mas a desigualdade brasileira lhe inspirou versos coléricos, como “”Você não sabia?/ Deu no jornal: para resolver o problema social,/ estão jogando os mendigos num canal” e “Nos morros verdes do rio/ Há uma mancha a se espalhar:/ São os pobres que vêm pro Rio/ e não têm como voltar”. E esta farpa: “É estranho viver numa terra em que a classe dominante e a classe intelectual são tão pequenas e todo mundo se conhece e é parente um do outro.”

Lendo e escrevendo em português

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EB aprendeu português, principalmente ler e escrever: “Sou como um cachorro – entendo tudo que dizem, mas não falo muito bem”. Apreciava as marchinhas carnavalescas: “É a última poesia popular do mundo.” Mas sambar eram outros quinhentos: “É como tirar leite de vaca – parece tão fácil quando a gente vê outra pessoa fazendo.” Considerou traduzir Clarice Lispector para a New Yorker: “Os contos dela são melhores que os de Borges”. E editou um seminal livro de poesia brasileira traduzida para o inglês, traduzindo ela própria catorze poemas (sete do seu adorado Drummond de Andrade).

EB está engastada no cânone da literatura universal. Em 2006, no NY Times, David Orr cravou: “Nada se compara ao impacto de um grande artista, e, na segunda metade do século 20, nenhum artista americano em qualquer meio foi superior a Elizabeth Bishop”. Ela ganhou um Pulitzer e um National Book Award e foi mentora de celebrados poetas mais jovens, como John Ashbery e Adrienne Rich. Um sintoma mundano dessa notoriedade foi a personagem baseada nela no romance “O Grupo”, de Mary McCarhty, em cuja versão cinematográfica o papel coube a Candice Bergen.

Capa em inglês do livro 'Love Unknown: The Life and Worlds of Elizabeth Bishop'. de Thomas Travisano Foto: The Washington Post

Bishop

EB era uma artesã naquele nível de perfeccionismo padrão Flaubert, que uma vez anotou em seu diário: “Na manhã inteira só escrevi uma vírgula. À tarde, retirei-a”. A poesia dela dava a impressão de uma simplicidade quase coloquial. Mas passa com louvor no teste de Clive James: “A única coisa que tenho a dizer contra a maior parte da poesia moderna é que ela evita todas as convenções de versificação sem chegar ao nível de prosa decente.”

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Entre tanta ourivesaria verbal, imbuída de pungente sabedoria humana, o poema mais icônico de EB é “Uma Arte”. Um exemplo fabuloso de “vilanelle”, uma forma poética de dezenove linhas, com cinco tercetos e uma quadra (outra vilanelle célebre é a de Dylan Thomas: “Do Not Go Gentle Into That Good Night”). “Uma Arte” (tradução magistral de Paulo Henriques Brito) é um inventário crepuscular de perdas: “A arte de perder não é nenhum mistério/tantas coisas contêm em si o acidente/de perdê-las, que perder não é nada sério./Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,/ a chave perdida, a hora gasta bestamente./A arte de perder não é nenhum mistério./ Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo, que eu amo)/não muda nada. Pois é evidente/que a arte de perder não chega a ser um mistério/por muito que pareça (escreve!) muito sério.”

Ou seja, Bishop sendo Bishop: a mágoa não degenera em lamúria, pois é redimida pela ironia estóica. Afinal, só encontra quem perdeu.

Reprodução de capa do livro 'Elizabeth Bishop: Uma Biografia', de Thomas Travisano Foto: Companhia das Letras

Elizabeth Bishop: Uma biografia

Autor: Thomas Travisano

Páginas: 129

Preço: R$ 44,90

Editora: Companhia das Letras

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